Além do espelho

29 de janeiro de 2014.

 

O temor é com o que chama de “transfobia institucionaliza-da”, a exemplo do que ocorreu na aeronáutica com a transexual Maria Luiza da Silva, que até hoje luta na justiça para voltar a integrar a Força Aérea Brasileira após ter sido aposentada compulsoriamente. Para a psicóloga, ainda há dificuldade em integrar os transexuais no mercado de trabalho fora da esfera da beleza.

“O tsunami da delegada Laura é positivo principalmente no sentido de trabalhar a inclusão dos transexuais na sociedade. É uma forma de mostrar que o transexual pode sim trabalhar, estudar, ocupar postos importantes e não apenas servir à prostituição”, afirma. “Ainda espero o momento em que a questão estará tão pulverizada que não será mais manchete.”

A opinião é compartilhada pela ativista Rafaela Damasceno. “Uma trans que ganha visibilidade pela personalidade, pelo profissionalismo, faz com que se tenha referência, que podemos vencer barreiras”, acredita.

Coordenadora do Projeto Transexualismo e professora da Faculdade de Medicina da UFG, Mariluza Terra Silveira diz que em 15 anos de projeto conseguiu perceber avanços no tratamento da questão dentro do próprio Hospital das Clínicas (HC). “No hospital houve mudança de comportamento. Lá se usa o nome social das pessoas para não causar embaraços, há um acolhimento. Mas no começo era difícil, tivemos de educar os profissionais.”

Com a sociedade como um todo, porém, as mudanças são mais lentas na percepção da médica. Tanto que, para evitar a discriminação, muitos transexuais preferem não se expor publicamente. “Mas não perco a oportunidade de ensinar. Os alunos serão multiplicadores desse conhecimento”, torce.
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Entrevista / Camilo Braz
Reconhecimento da cidadania

Pesquisador do Ser-Tão, Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade vinculado à Faculdade de Ciências Sociais da UFG, o professor de antropologia Camilo Braz fala na entrevista abaixo sobre o lento processo de mudança social rumo à visibilidade positiva dos transexuais.
29 de janeiro de 2014 (quarta-feira)

Há uma dificuldade muito grande em abordar a questão da transexualidade na sociedade e em Goiás em particular?

O machismo, o sexismo, a homofobia, a transfobia são, infelizmente, fenômenos sociais ainda bastante arraigados e generalizados. Mas também bastante complexos em termos sociológicos. A transexualidade constitui inegavelmente uma temática cercada de muitos preconceitos e pré-noções, bem como de violências físicas e simbólicas, em muitas sociedades contemporâneas. Inclusive no Brasil, em Goiás, em Goiânia. Mas o que temos aqui em Goiás é um ambiente social multifacetado, diverso, complexo. E dinâmico – o que implica pensarmos o tempo todo nas tensões entre permanências e mudanças também em torno de relações de gênero e de sexualidade.

Há uma abertura maior hoje para os transexuais se manifestem?

Tanto a transexualidade quanto a travestilidade constituem experiências ainda marcadas, no Brasil, por discriminações, preconceitos, violências e exclusões sociais. É claro que a atuação (fundamental) do movimento social organizado impulsionou, nos últimos anos, tanto a formulação de políticas públicas voltadas para travestis e transexuais quanto o surgimento de certa visibilidade positiva em torno desses grupos. Mas o alcance de tais medidas esbarra ainda em muitos percalços e desafios. Os escassos dados existentes a respeito da violência contra essa população mostram, por exemplo, o quanto trata-se de grupos sociais ainda bastante estigmatizados e vulnerabilizados. O aumento da influência de setores conservadores na política, especialmente no âmbito do Executivo e do Legislativo, também demonstram o quanto ainda é longo é árduo o caminho para o reconhecimento da cidadania de travestis e transexuais no Brasil.

Casos como o da delegada Laura ajudam? Ou são apenas pontuais?

É possível afirmar-se que a transexualidade tem passado, no Brasil, por um processo lento e gradual de visibilidade positiva que se deve a diversos fatores, como a atuação de um movimento social organizado em torno dessa questão. Tal processo pode ser observado, por exemplo, na chamada mídia de massa, que tem cada vez mais abordado o tema, o que possibilita uma ampliação da abertura para se falar dele sem preconceitos. Porém, a atuação da mídia, em termos gerais, é ambivalente – muitas vezes, as matérias esbarram em velhos chavões e estereótipos ao referir-se tanto a travestis quanto a transexuais.

Por que acredita que ainda hoje há discriminação? É falta de conhecimento ou de punição?

Acredito que, em parte, a ausência de legislação que criminalize as violências contra a população LGBT seja responsável pelas violências cotidianamente perpetradas contra travestis e transexuais no Brasil. Contudo, é preciso termos em mente que, ainda que tal punição seja necessária, as mudanças que nos levariam a um ambiente social menos preconceituoso e excludente com relação a tais grupos são, também, de ordem cultural e social.