Ensino Médio para quem?

Para a nova diretora da Faculdade de Educação da UFG, adiamento da Conae interfere de forma significativa na educação do país

Sáb, 08 de Fevereiro de 2014 14:08
Vanessa Maia - Editoria de educação

 

Do ponto de vista da garantia de um ensino de qualidade para todos, o Plano Nacional de Educação (PNE), em tramitação desde 2010 no Congresso Nacional, representa avanços. Porém, as propostas apontam para a possibilidade de um entrave no que diz respeito ao financiamento.
Essa é a opinião da nova diretora da Faculdade de Educação da UFG (Universidade Federal de Goiás), Karine Nunes de Moraes, que tomou posse no dia 20 de janeiro. Nesta entrevista ao Escola, ela avalia a realidade do ensino público brasileiro e fala sobre os desafios tanto do trabalho docente quanto da categoria.  
A diretora também analisa a importância da formação continuada para os professores e analisa criticamente a crise do Ensino Médio na rede pública. Para ela, é impossível evitar a evasão dos jovens e adultos de uma escola que não evoluiu e não respeita nem reconhece a dura realidade dos estudantes das classes trabalhadoras do Brasil

Quais são as suas principais propostas  de trabalho para a Faculdade de Educação da UFG?
É continuar debatendo e fazendo com que a Faculdade de Educação seja protagonista da educação na UFG, no estado de Goiás e no Brasil. Já que essa é a projeção que a instituição tem e que alcançou nos últimos anos. Estamos neste momento, eu e a vice-diretora Mirian Bianca Ribeiro, no processo de elaboração do plano de gestão e, portanto, traçando as metas para os próximos quatro anos. De acordo com o regimento e o estatuto da UFG, nós temos 90 dias para apresentar isso à congregação, um conselho diretor que reúne professores, funcionários e representantes estudantis da instituição.

Quais são os princípios e características da Faculdade de Educação para este mandato?
Temos princípios muito claros de formação e de militância de diferentes áreas no momento, mas ela é, de fato, colegiada e compartilhada. A Faculdade de Educação tem algumas características onde o vice-diretor não é um cargo considerado “decorativo”, que só atua na ausência do diretor. Todos nós temos tarefas bem definidas. Aqui a vice-diretoria assume a coordenação da relação da faculdade com todas as outras unidades onde nós ofertamos as disciplinas, tanto de licenciatura, qaunto de bacharelado. Uma característica da faculdade são os debates coletivos e a participação conjunta para pensarmos todas as questões necessárias e debatermos nossas diferenças de perspectivas e convicções.

Entrando agora na questão da educação pública brasileira. Na sua opinião, o que o Plano Nacional de Educação, quando aprovado pelo Congesso Nacional, proporcionará para o futuro da educação?
Algumas das ações e propostas do PNE, no projeto de lei, representa avanços, do ponto de vista da garantia de um ensino de qualidade para todos e da qualidade socialmente referenciada. Porém, há um entrave. A meta número 20, que diz respeito ao financiamento: “Ampliar o investimento público em educação de forma a atingir, no mínimo, o patamar de 7% do Produto Interno Bruto (PIB) do País no quinto ano de vigência desta Lei e, no mínimo, o equivalente a 10% do PIB no final do decênio”.
Se essa meta não for revista e for mantida, o PNE não vai ter consequência, pois há estudos sobre o financiamento que apontam que, mesmo vinculando 10% do PIB para a educação pública no Brasil, seria necessário muito mais recursos, ou se mantivesse esse mesmo porcentual, o Brasil gastaria pelo menos 50 anos para garantir o direito constitucional de educação pública para todos. E quando eu falo de educação pública para todos, ainda estou me referindo apenas à Educação Básica.

O adiamento da Conferência Nacional de Educação (Conae) de fevereiro para novembro pode interferir na aprovação
do PNE?
Esse adiamento interfere de forma significativa em uma das metas do Plano Nacional de Educação, que é a construção do Sistema Nacional Articulado de Educação, onde então, o sistema de ensino está diretamente ligado à relação de cooperação, de assistência técnica, de respeito à autonomia de entes federados, mas que tem como meta uma educação de qualidade para todos, independente de qual sistema em que aquele cidadão está matriculado.
A outra questão é que o adiamento da Conae, da maneira com foi feito, de forma unilateral pelo Ministério da Educação (MEC), desrespeitou os movimentos sociais, que durante três anos fizeram encontros para debater e elaborar propostas. Só em Goiás foram realizadas 13 conferências municipais e intermuni-cipais de educação. Mobilizamos escolas, secretarias estadual e municipal, Undime, e a sociedade em geral, para discutir a proposta do PNE. Então é um desafio muito grande manter a população brasileira articulada até novembro.

A sobrecarga de responsabilidades do profissional da educação é um tema preocupante. De que forma isso pode influenciar na saúde desses profissionais? Também pode interferir dentro da sala de aula?
Toda sobrecarga de trabalho, independente de qualquer profissão, faz mal à saúde. Ao falar sobre isso temos que questionar de qual sistema de ensino nós estamos falando? Qual nível educacional? Porque nós temos condições totalmente díspares entre os profissionais da educação, em especial os profissionais do Magistério. Na verdade, nós não temos apenas uma carreira docente, nós temos no Brasil um sistema federal. Então os professores de Educação Básica tem um plano de carreira diferenciado dos demais no Brasil. Cada um desses sistemas possui formas próprias de organização, com justificativas diferentes na carga horária. Isso torna complexa qualquer análise sobre o trabalho docente, sobrecarga de trabalho e condições de trabalho. E esse é um grande desafio para a nossa categoria.

Além da sobrecarga de trabalho, existe outro grande problema dos profissionais de Magistério, que é o pagamento do Piso Salarial Nacional de acordo com a Lei 11.738/08. Qual o seu posicionamento a esse respeito?
A luta pela implementação do Piso Salarial Nacional não é só para o estabelecimento de um valor mínimo para o exercício do Magistério com formação inicial de nível médio. A Lei do Piso, uma defesa do governo federal, diz que pelo menos um terço da jornada semanal de trabalho do professor é para atividades fora da sala de aula, fora da orientação de aluno. Seria exatamente aquele tempo para o professor estudar, pesquisar, investir na sua formação continuada e participar das reuniões pedagógicas demandadas pela escola, como o planejamento de aula e a elaboração do projeto político pedagógico, que ainda hoje são feitos e discutidos em uma jornada extra não remunerada pela grande maioria de professores no Brasil.

E qual a importância do professor investir na sua formação continuada?

Isso é totalmente importante por que o conhecimento não se esgota; ele é movimento e é processo. E não é só a questão de atualização, sobre técnicas, métodos ou recursos didáticos, é longe disso! Mas é preciso ter tempo para pensar e discutir, que seja conhecer outras metodologias ou outras realidades. A formação continuada é parte importante de um plano de carreira. É pensar em uma formação continuada que seja importante para esse profissional, que sirva para ele, inclusive, repensar as suas práticas, pensar outros conhecimentos, outras teorias e entrar em contato com outros profissionais.

Quais os fatores têm contribuído para o desinteresse dos jovens pelas carreiras ligadas às licenciaturas e Pedagogia?
Para mim, claramente, o cancelamento unilateral da Conae é uma lição que diz para a sociedade brasileira que a educação é importante, mas nem tanto. Há outras prioridades e o jovem vai sendo bombardeado diariamente com outras perspectivas. A questão do Magistério, do interesse na licenciatura, isso não acontece só com a Pedagogia, porque ainda há mais procura por licenciatura em Pedagogia do que nas demais áreas.
Não é a toa que hoje existem políticas de incentivo e até o pagamento de bolsas para as áreas mais críticas no Brasil, como Matemática, Física e Química. Não só porque são licenciaturas mais difíceis, mas a estrutura é pouco interessante.
Por outro lado, as pessoas pensam: qual a importância desse conhecimento? Não o meu papel no mundo, mas aquilo que eu sou, qual a minha identidade profissional? Isso nós precisamos resgatar. A desistência da profissão é muito grande nos cinco primeiros anos, o que não é um problema do currículo formativo. Isso não tem a ver com a grade curricular desses cursos estarem defasadas ou não. Nós temos um problema que é social, econômico, político e histórico.

O desenvolvimento tecnológico passa a exigir novas posturas tanto da escola, quanto do professor. Quais as dificuldades apresentadas pelas universidades no processo de formação inicial dos professores para o uso das tecnologias?
Com as novas tecnologias, você muda um tipo de linguagem, mas a base é a mesma. Leitura e escrita é o mesmo fenômeno, independente do suporte. Seja o quadro de giz, seja um livro, seja a tela de um computador, seja um data-show, um retroprojetor ou um cartaz. O exercício da dúvida e do raciocínio independe do suporte. Não é a posse ou a existência de um laboratório com computador na escola que vai tornar essa aula melhor porque ela passa é pela relação entre professor, aluno, informação e produção do conhecimento. A modernização do ensino não é aquisição de computador e internet. A educação envolve formação de pessoas e uma formação do indivíduo enquanto ser, que pensa, que discute, que raciocina. É o exercício do contraditório, é o exercício da diferença e isso precisa estar em movimento.

A evasão no Ensino Médio se tornou um grande problema em todo o Brasil. Quais os fatores podem contribuir para esse abandono por parte dos alunos?
A evasão, em si, não se tornou um problema. Eu diria que o acesso ao Ensino Médio por parte dos jovens e adultos das classes populares trabalhadoras é que se tornou um problema. A universalização do Ensino Fundamental e as maiores exigências e demandas para o Ensino Médio se tornou um problema para os sistemas de ensino, que tem muito mais gente para o Ensino Médio do que há 10 anos. E porque isso é um problema? Por que essa escola atual foi pensada para jovens de 15 a 17 anos. Mas hoje cerca de 45% dos que terminam o Fundamental têm mais do que 15 anos. O perfil mudou. Não é mais esse público idealizado com 15 anos, que não trabalha, é sustentado pelos pais, teve educação exemplar e nunca teve que trabalhar. O grande público hoje é trabalhador, tem filhos e uma vida difícil que tem que conciliar com os estudos. Por isso digo que esse Ensino Médio não foi pensado para pessoas reais. Essa escola que nega, inclusive, a existência do aluno, que exige que ele esteja disposto e alerta, que preste atenção, que saiba responder todas as perguntas do professor e que tenha feito as tarefas de casa, não é uma escola para a realidade.
Um jovem ou adulto trabalhador não tem condições de ficar nessa escola. Uma instituição que tradicionalmente matricula de 45 a 50 jovens na sala de aula com essas dificuldades já prevendo que eles vão sair. E faz isso para chegar no final do ano com pelo menos 20. O foco não é o atendimento de acordo com as necessidades educativas de cada um,
nós não estamos falando de educação especial, nós aprendemos de formas diferentes e precisamos de acompanhamentos diferentes. Então a evasão também está ligada à organização dos sistemas de ensino para essa modalidade. É como se aquele jovem fosse projetado para sair. Por isso a escola do Ensino Médio precisa mudar, precisa pensar em pessoas concretas.

*Quem é e o que faz?

Karine Nunes de Moraes é diretora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás (UFG), possui graduação em Pedagogia pela UFG, é mestre em Educação Brasileira pela UFG e doutora em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco. Integra a Associação Nacional de Política e Administração da Educação (Anpae) e a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped). Tem experiência na área de educação com ênfase em Política Pública Educacional, atuando principalmente em gestão escolar, interiorização, expansão, política educacional e ensino superior.

Fonte: Tribuna do Planalto