Justiceiros, caminho para a barbárie

Especialistas em comportamento alertam para imposição da desordem social, caso não cessem os atos de violência a suspeitos de crime

A continuarem os fatos envolvendo 'justiceiros', especialistas em análise do comportamento humano não descartam a imposição da desordem social e da barbárie no País, que é quando a lei não impera, e sim o julgamento individual ou de grupos que agem à revelia de direitos e do respeito à dignidade humana. Seria, avaliam, um retrocesso para a sociedade e o processo democrático, que estabelece instituições adequadas para investigar e julgar autores de práticas criminosas.

Foi em fevereiro que ga­nhou repercussão no País a ação dos grupos chamados de ‘justiceiros’. Eles normalmente reúnem pessoas revoltadas que tomam a iniciativa de prender vândalos e outros suspeitos de atos criminosos e fazer justiça com as próprias mãos.

A primeira ação que ganhou 'holofote' ocorreu no Rio de Janeiro. Um jovem, acusado de praticar assaltos, foi pego por um grupo, que o espancou, deixou nu e depois prendeu a um poste com uma tranca de bicicleta. Fatos semelhantes foram registrados no País. Em Goiás, o primeiro caso ocorreu no Setor Alto da Glória, no dia 17 de fevereiro. Um jovem de 16 anos, flagrado tentando roubar uma moto, foi surpreendido por um grupo de operários que trabalhava na região.

O menor acabou preso, amarrado com fios elétricos a uma haste de metal e agredido. A ação foi registradas por várias testemunhas, que filmaram as agressões. O ato de violência não se tornou pior por conta da intervenção de algumas pessoas, que tentavam conter os mais afoitos até que polícia chegasse. O menor teve escoriações e arranhões nas costas.

Outros casos foram registrados em Goiânia. No Jardim Novo Mundo, o jovem Israel Alves, de 20 anos, foi detido por motoqueiros e espancando pela população após assaltar uma mulher no Setor Universitário. Já na Vila Regina, os moradores reagiram, perseguiram e espancaram um suspeito de assalto a residência. Alcenor Farias, de 32 anos, foi flagrado pelos próprios moradores da casa, que tentaram prender o homem.

O caso mais recente ocorreu no dia 5 de março, no Conjunto Fabiana. O pedreiro Fábio Rodrigues, de 30 anos, tentava furtar uma residência, mas foi flagrado pelos moradores da casa. Na fuga, ele foi detido por um homem, que o imobilizou. Os moradores da região, revoltados com a ação do suspeito, começaram a agredi-lo com tapas e chutes. Chegaram a utilizar uma barra de ferro para linchar o rapaz.

 

Estudiosos apontam política falida

 

Para a socióloga da Pon­tifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO) Elizabete Bicalho, a questão dos justiceiros exige reflexões e impõe desafios para a história humana, principalmente na garantia dos Direitos Humanos. “A violência não combina com o respeito aos direitos humanos e tão pouco com a vivência democrática. A violência não é legítima. Ela fere a autonomia e a liberdade dos indivíduos, portanto não deve ser aceita. Ela fere os princípios da dignidade humana, questão que o processo civilizatório sempre pretendeu conquistar. A justiça pelas próprias mãos nos aproxima da barbárie”, analisa.

“Tais atitudes violentas revelam, parece-me, a falência da política e das instituições do Estado. A falência da política porque a violência tomou o espaço da fala e a ação conjunta, que caracterizam a política. Falência das instituições do Estado porque a violência da população contra os chamados 'marginais' busca resolver problemas que essa população esperava que fossem resolvidos pelo Estado. Os linchamentos representam a revolta individual contra uma forma de convivência – social, política, cultural, econômica, jurídica – que não satisfaz”, avalia a filósofa Helena Esser dos Reis, doutora em Ética e Filosofia Política e professora da Faculdade de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Direitos Humanos da Universidade Federal de Goiás (UFG).

Sendo a violência uma manifestação de força à revelia de qualquer direito, Helena Esser explica que onde ela está instalada ou aflorada já não é mais possível buscar intermediações ou reequilibrar a paz pública, que é a finalidade da Justiça no estado democrático. Para ela, a ação violenta impede o diálogo, as intermediações, as composições, na medida em que – por meio da força – impõe se ao outro a sua própria posição. “Isso se assemelha à tirania, do que a um regime político democrático. Uma democracia deve ser entendida como uma comunidade de diálogo, de busca conjunta aos problemas comuns, de acolhimento à diversidade. Exatamente por isso há leis que tipificam crimes e prescrevem penas. Sempre que houver violação da paz pública, essas leis devem ser aplicadas pelo poder público com equilíbrio a fim de se restabelecer a paz pública”, anota a filósofa.

A psicóloga Silvia Zanolla, mestre em Psicologia Social e pesquisadora da UFG, ressalta que essa conduta da população representa o desafio que é enfrentar a violência no Brasil, onde muitos têm optado pela própria violência. “São movidos por sentimentos de vingança e ódio, nunca pela razão”, pontua. A especialista relata que fazer justiça com as próprias mãos é retomar a barbárie social e regredir a processos 'instintuais' primários, ou seja, retornar a um estágio em que predomina a satisfação imediata, irracional, autodestrutiva. “Para Freud, a relação com a sociedade e a cultura reflete uma projeção do homem que se dá sobre suas ações e pensamentos. Assim, destruir o outro, em qualquer situação, é destruir a si mesmo. Representa, no caso da vingança, a vitória da morte ao fracasso da vida, da tentativa de melhorar humanamente o que é desumano.”

Quem também ressalta que esses episódios criam o risco de instalação da desordem social é a psicóloga e especialista em Psicopatologia Clínica da UFG Marilúcia Pereira do Lago. “Esse posicionamento da sociedade é preocupante na medida em que indica uma incapacidade do Estado em dar garantias de segurança e manutenção da ordem. Desacreditada da justiça legal, a população entende que tem o direito de fazer justiça com as próprias mãos. Isso seria o caos e anunciaria um retrocesso aos direitos humanos”, argumenta a professora.

Para ela, o medo que a população tem de sair de casa, de presenciar diversos casos de impunidade, justifica somente o sentimento de revolta, que deve ser traduzido na busca de mecanismos legais de ação, cobrando-se, por exemplo, política públicas eficientes. “Cabem atitudes que promovam reflexão e ações transformadoras. Se queremos uma sociedade menos violenta, temos que pensar na possibilidade de construção de uma sociedade mais justa, com melhor distribuição de renda, com oportunidades iguais aos cidadãos. A violência é, sem dúvida alguma, fruto da história de exclusão sobre a qual edificamos a sociedade brasileira”, reflete.

A psicóloga também credita essa conduta de justiceiros a um comportamento que tem dupla fonte. A primeira, é a banalização da violência - tanto pelo excesso de crimes, quanto pela ação violenta da polícia e do culto à violência por parte da mídia, principalmente a televisiva. A segunda fonte é a carência de processos educativos. “A educação é, sem dúvida, o melhor antídoto para a violência”, ressalta Marilúcia. “Os chamados psicopatas não surgem na sociedade de um dia para o outro, como em um passe de mágica. Existe sempre uma relação entre condições biofisiológicas e sociais no comportamento humano”, completa Sílvia Zanolla.

 

Agressores precisam ser responsabilizados

 

 Preocupada com a revolta da população e com a ação violenta de membros da sociedade, a Ordem dos Advogados do Brasil, seção Goiás, designou duas comissões – Direitos Humanos, Acesso à Justiça e Direitos Sociais (CDH), e de Segurança Pública e Política Criminal (CSP) – para acompanhar os casos dos justiceiros em Goiás. Segundo o presidente OAB, Henrique Tibúrcio, o objetivo é averiguar se os crimes praticados pelo agredido e pelos agressores é investigado com o mesmo empenho.

Tibúrcio reconhece que a atitude da população é resultado da sensação de insegurança que ela vive, mas lembra que agredir um marginal é ilegal, considerado crime de lesão corporal. "A pessoa que agride está cometendo um crime igual ou até maior que o que o bandido cometeu. Não podemos encorajar essas atitudes (da população), é preciso combater. Hoje é um criminoso que você agride, mas amanhã pode ser um desafeto, um morador de rua ou usuário de drogas que o importuna", observa.

Para o presidente, é preciso responsabilização de quem praticou os atos de violência. “Isso é para efeito profilático. Se o poder público não age no sentido de punir as pessoas, elas vão entender que a ação é legítima. Os agressores precisam ser identificados e punidos. Fazer justiça com as próprias mãos não é o caminho", completa. Henrique Tibúrcio cobra uma resposta o mais rápido possível para mostrar que as autoridades estão agindo e levando os responsáveis a responder pelos seus atos. “Despertar a consciência das pessoas vai depender de uma resposta em tempo certo. Em contrário, a tendência é dos casos não cessarem e aumentarem”, alerta.

 

Sem inquérito

A Polícia Civil ainda não indiciou ninguém ou abriu inquérito para investigar a violência contra os suspeitos de crime. A delegada regional de Goiânia, Lúcia Silvestre, explica que nenhum dos agredidos fez representação, ou seja, apresentou queixa contra a violência sofrida. “Todos foram vítimas de lesão corporal, mas durante o flagrante nenhum deles registrou o fato”, observa. Segundo Lúcia Silvestre, a Polícia Civil não nega fazer qualquer procedimento, é preciso somente que as 'vítimas' (no caso, os suspeitos que apanharam) registrem o Boletim de Ocorrência. O crime de lesão corporal prescreve em seis meses. “Até lá, qualquer um dos que sofreram as agressões pode procurar uma delegacia”, ressalta.

De acordo com a Polícia Militar, a Constituição Federal permite ao cidadão comum fazer a prisão em flagrante. O suspeito pode ser imobilizado, mas nunca sofrer qualquer tipo de violência. Para o assessor de imprensa da PM, Coronel Divino Alves, a melhor conduta nesses casos, depois da imobilização do suspeito, é entrar em contato com a polícia pelo número 190. Ele lembra o risco ao qual alguém fica exposto ao tentar abordar um bandido. Em casos mais extremos, a pessoa corre risco de morte.

Fonte: Tribuna do Planalto