“Ruim para o médico, péssimo para o paciente”

Com 80 anos, natural de Araguari (MG) e, desde 1966, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás (UFG), Celmo Celeno Porto é referência para muitos profissionais. Em entrevista ao POPULAR, ele refletiu sobre as mudanças na profissão e o comportamento dos médicos.

08 de junho de 2014 (domingo)

Sebastião Nogueira

 

Mudou alguma coisa para o profissional, desde a época em que você começou na carreira médica?

 

Mudou tudo. Primeiro, na formação. Estou formado há 55 anos. A maneira de se formar na década de 1950 era muito diferente, porque tinha um número de escolas muito pequeno e todas elas tinham condições excelentes, porque eram poucas. Então, havia toda uma estrutura de hospitais e isso era um diferencial. O nível de concorrência era o mesmo, mas havia uma grande diferença na maneira de organizar o ensino. Não havia internato. Fazíamos seis anos de faculdade, mas com muita prática. Não havia residência. Nós saíamos já preparados para trabalhar. Não tinha tanta informação como tem hoje. Os recursos tecnológicos, da mesma forma. Isso dá uma diferença muito grande.

 

 

 

O mercado de trabalho também era diferente?

 

Totalmente. Muito diferente. Havia ainda uma proporção grande de medicina liberal, embora ela já estivesse começando a diminuir, que era aquela responsabilidade direta do paciente em pagar o próprio médico. Naquela época, no mínimo 50% da atividade médica e da demanda estava dentro do conceito de medicina liberal. Os honorários eram definidos entre os dois. Não havia tabela nenhuma. Hoje, a parcela de medicina liberal é ínfima. Hoje, você pode separar a população brasileira em três grupos bem distintos: cerca de 150 milhões de brasileiros dependem de políticas públicas do SUS, 45 milhões estão dentro de planos de saúde ou podem entrar e aquela parcela mínima de 5 milhões que recorrem ao profissional liberal.

 

 

 

Na sua época, já existia essa realidade marcada pela multiplicidade de vínculos empregatícios, com médicos que chegam a ter quatro, cinco empregos?

 

Estava começando. Lembro que, no início, isso foi um privilégio. Curioso, não é? Por que privilégio? Porque médico só podia ter um emprego, aí houve uma mudança na legislação que permitia ter dois vínculos, para conciliar o trabalho nas redes pública e privada. Hoje é um tremendo ônus, um tremendo castigo. Múltiplos empregos, com remuneração baixa em cada um, obrigam o médico a correr de um para o outro, às vezes até de uma cidade para outra. Isso é um tremendo ônus, com repercussões péssimas. É nocivo. É um mercado selvagem. O médico se desgasta, fica cansado, desiludido, frustrado. Ninguém resiste a viver anos desse jeito.

 

 

 

E é um ônus só para o médico ou para o paciente também?

 

O paciente também perde muito. Para correr atrás de um orçamento melhor, o médico atende mais, mas às vezes atende cansado, com dificuldade de raciocínio, estresse. O desgaste é ruim para o profissional, mas é péssimo para o paciente.

 

 

 

No seu livro Cartas para Estudantes de Medicina, você fala muito da importância da relação médico-paciente. Como fica ela nesse contexto?

 

Cada vez mais, ela fica pior. A relação médico-paciente depende do encontro clínico. Só disso. Não depende de nenhum recurso tecnológico, de nenhum equipamento. E depende, também, do tempo adequado. Ninguém faz relação médico-paciente atendendo 30, 40 pacientes por dia. Trata-se de uma relação interpessoal, que se origina na confiança. Não é preciso conhecer a fundo o médico, mas é preciso ter olho no olho. Não existe medicina de excelência se a relação medico-paciente não for boa. É ela quem está perdendo com essa anarquia do sistema de saúde. Escrevo isso com todas as letras, várias vezes. A relação eu e tu decide tudo. Se começar bem, vai continuar bem em todo o sistema.

 

 

 

A formação atual dos médicos leva isso em consideração?

 

Sim, claro, da mesma forma que levava na minha época. Hoje, a diferença é a enorme quantidade de informação, porque estamos passando por uma revolução biológica e tecnológica, a qual ainda não sabemos aonde vai parar, e tem também esse conflito entre a classe e o governo. Estamos em pleno “tsunami” da maneira como os médicos estão trabalhando. Para eu entender a medicina hoje, eu preciso entendê-la como um bionegócio, assim como agronegócio. E é um bionegócio que envolve milhões, porque envolve indústria farmacêutica, indústria de equipamentos, clínicas, hospitais, laboratórios, planos de saúde, médicos, enfermeiros. 

Fonte: O Popular

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