Comida preocupa 38% dos goianos

Jornal O Popular - 27/11/2010


Comida preocupa 38% dos goianos

Estudo divulgado ontem pelo ibge mostra que mais de 2,4 milhões de moradores de Goiás não têm acesso garantido a alimentos em quantidade e qualidade

João Gabriel de Freitas

 

O número de pessoas que enfrentam o risco de faltar comida em casa aumentou nos últimos seis anos em Goiás. São cerca de 2,4 milhões de pessoas sob insegurança alimentar - 329 mil a mais do que havia em 2004. O conceito inclui problemas de carência imediata de alimentos, risco de falta em um futuro próximo ou baixa qualidade das refeições.

Os dados, divulgados ontem, fazem parte de um levantamento suplementar da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2009, feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em convênio com o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). O levantamento mostra, ainda, que Goiás segue na contramão do restante do País, onde o número de pessoas com insegurança alimentar diminuiu no período, de 34,9% para 30,2% - hoje cerca de 11 milhões de brasileiros não sabem se terão comida na mesa todos os dias.

Em Goiás, o porcentual de pessoas vulneráveis à fome foi de 34,6% em 2004 para 37,8% em 2009 (veja quadro). Goiás também é o único Estado do Centro-Oeste onde o índice de pessoas com insegurança alimentar está acima da média nacional.

Os números regionais que apontam uma diminuição do número de pessoas no Estado que não sentem qualquer restrição quanto a sua alimentação contrastam com o crescimento das riquezas internas, medido pelo Produto Interno Bruto (PIB). Segundo o último levantamento disponibilizado pela Secretaria de Planejamento (Seplan-GO), o PIB goiano apresentou crescimento de 8% em 2008, bem acima da média de 5% de crescimento dos quatro anos anteriores. No entanto, ressalta-se diante dos atuais dados do IBGE a falta de ramificação desse recursos, de forma incisiva, frente a classes populares.

Desigual


O aumento do números de pessoas com restrições alimentares no Estado e incertas diante do futuro reforça o controverso relatório da Organização das Nações Unidas (ONU), que apontou Goiânia como a cidade mais desigual em distribuição de renda do País, figurando como a 10ª mais desigual do mundo, divulgado no início do ano. "Notamos essa pior distribuição de renda por cidades ao Norte e Nordeste do Estado e também na capital, como a mais desigual da região Central", afirma o professor e doutor em economia da Universidade Federal de Goiás (UFG), Dnílson Dias.


O relatório do IBGE não reflete a pequena melhora no índice Gini, que mede o grau de distribuição de renda utilizando um coeficiente de 0 a um (quanto mais próximo de um, maior a desigualdade). Em Goiás, o índice calculado em 2009 ficou em 0,50, contra 0,54 no País e 0,56 no Centro-Oeste. "Mesmo com o Gini abaixo da média nacional, notamos que a riqueza ainda é concentrada. Em pesquisa recente na universidade, constatamos que em 256 municípios goianos, pelo menos em 226 deles a distribuição dos gastos públicos são ineficientes para reverter essa desigualdade", aponta Dnílson Dias.

Dificuldade cresceu entre quem trabalha

Na mesma pesquisa divulgada ontem pelo IBGE, destaca-se que também cresceu em Goiás o número de pessoas que sofrem com a restrição de alimentos mesmo estando empregadas. O porcentual de pessoas ocupadas e com insegurança alimentar grave ou moderada foi de 60,3% para 63,5%. Em contrapartida, os desocupados decresceram de 39,7% para 36,5% em quatro anos.

Coordenador do Centro de Pesquisas Econômicas e Mercadológicas da Faculdade Alpha, o professor Aurélio Troncoso defende, tendo em foco sobretudo Goiânia, que a tendência do empresariado nos últimos anos foi manter o que conquistou, sem aumentar de forma significativa a empregabilidade. "A renda familiar das classes mais baixas, que muitas vezes contam apenas com planos governamentais de assistencialismo básico, não acompanhou o crescimento dos juros e do preço dos alimentos, inclusive da cesta básica, conforme registrou o Índice de Preços ao Consumidor (IPCA)", reforça Troncoso. "Para controlar a inflação, o governo aumentou muito a taxa de juros (Selic) no último ano, ultrapassando os 10%. Bancos e produtores sobem seus preços, e quem realmente paga é o consumidor", argumenta o economista.

Aurélio Troncoso também destaca em Goiás a falta do hábito local em fazer qualquer planejamento alimentar. "Normalmente a pessoa não faz controle. Opta pela comida mais fácil de ser feita e nem sempre mais saudável. Consome o que tem à disposição sem mesclar produtos que poderiam ser melhor aproveitados, e por um prazo maior. Há também muito desperdício", diz o economista. Na região Centro-Oeste, o índice de pessoas com segurança alimentar de Goiás (62,2%) ficou abaixo do Distrito Federal (78,8%), Mato Grosso (77,9%) e Mato Grosso do Sul (69,5%).

 

Almoço depende da ajuda de vizinhos

Alfredo Mergulhão

Ontem teve almoço no barraco onde mora a família de Lucilene Rodrigues Torres, no Setor Vale do Sol, em Aparecida de Goiânia. Uma refeição completa, composta pelos ingredientes da base alimentar do brasileiro: arroz, feijão, carne e salada. Mas a catadora de materiais recicláveis não sabe como matará a fome na segunda-feira. "No armário tem comida para uns três dias. Depois, a gente não sabe como vai ser. Temos que comer pouquinho para durar mais", diz.

Aos 25 anos, casada e mãe de um casal de crianças, Lucilene convive com a fome há 10 anos, desde que deu à luz o primeiro filho, ainda adolescente. Ao lado do marido, tenta "dar os pulos" quando a geladeira fica vazia. "Comida não cai do céu, então a gente encara a prefeitura e procura um bico para receber diária", conta Walterson Alves dos Santos, também catador de materiais recicláveis. Ele só se recusa a pedir na rua.

Os dois filhos de Lucilene são franzinos, a imagem de quem desenvolve o organismo com carência de nutrientes. Por vezes famintos, despertam o desespero dos pais. "O mais difícil é quando eles veem as pessoas comendo na televisão, pedem para comprar, e a gente não tem condições de dar", afirma Walterson, de 26 anos.

As poucas vasilhas no armário revelam que as refeições são raras no barracão onde mora Sirley Ferreira Coelho. As panelas voltaram a ser usadas ontem, mas tinham ficado paradas desde quarta-feira. Os alimentos foram doados pelos vizinhos, moradores de uma invasão criada por catadores de lixo nos fundos da Penitenciária Odenir Guimarães, em Aparecida de Goiânia. A dona de casa não é beneficiária de programas governamental. Sirley tem 36 anos e vive com o marido e cinco filhos num barraco de quatro cômodos. Falta espaço e comida. Sobra fome e abandono, numa moradia envolta por lixo e repleta de moscas. "O adulto dorme sem janta, mas a criança não entende quando não tem nada para comer. Eles choram, pedem, dão birra por comida", diz.