[UFG] Olhar atento sobre a literatura (O Popular, 4/11/2009)

Olhar atento sobre a literatura

Destaque no Prêmio Jabuti, A professora Vera Tietzmann fala de seu trabalho de crítica e conta histórias de sua família, sempre ligada às artes e à literatura

Rogério Borges

Na cadeira de balanço que a acompanha desde a infância, a professora, crítica literária e ensaísta Vera Maria Tietzmann, com um livro nas mãos, vai para cá e para lá, na cadência da literatura. Ela, que começou lendo Monteiro Lobato, até hoje se ocupa da literatura infantil, agora com outros olhos. Os grandes autores deste gênero passam pelas suas mãos e, destes encontros recorrentes, surgem interpretações novas que ajudam a decifrar o imaginário de suas criações. Hoje, Vera é um dos nomes mais respeitados na análise deste segmento no Brasil.

Todo este prestígio foi coroado pela Câmara Brasileira do Livro (CBL), que concedeu à autora o terceiro lugar do Prêmio Jabuti na categoria paradidáticos pelo trabalho Literatura Infantil Brasileira – Um Guia para Professores e Promotores de Leitura. O prêmio será entregue hoje à noite, em São Paulo.

Surpresa
Professora da Universidade Federal de Goiás há 30 anos, Vera Tietzmann foi surpreendida com a premiação. “Para começar, eu nunca imaginei em fazer um livro didático”, admite. “Há dois anos, porém, a Ione Valadares, proprietária da Editora Cânone, me encomendou um livro nesta área. Como tinha muitos trabalhos publicados sobre literatura infantil, ela achou que eu deveria fazer um guia. Pensei o livro para ser usado, sobretudo, nos cursos de Letras e Pedagogia.”

Depois de topar o desafio, Vera aproveitou as férias de julho de 2007 para organizar a obra. Ela e Ione dividiram as despesas da publicação e a lançaram no ano passado, durante o 1º Salão do Livro Infantil e Juvenil de Goiás. “Ele é um livro de reflexão teórica e de análises críticas. No final, acabou sendo um livro para trabalhar nas graduações, mas também no ensino fundamental.”

Inovações
Vera acredita que a escolha da obra para o Prêmio Jabuti, numa categoria que teve mais de 140 concorrentes, se deveu a algumas inovações. Dividido em capítulos independentes, o livro pode ser utilizado pelos professores de diferentes formas, com cada docente compondo seu próprio programa de aulas.

Cada parte deste guia está relacionada a um grande autor da literatura infantil brasileira com o qual Vera Tietzmann já trabalhara.

Por seis anos consecutivos, ela conduziu um projeto de produção de textos críticos por parte de seus alunos sobre a obra de escritores como Lygia Bojunga, Marina Colasanti, Ana Maria Machado, Ruth Rocha, Sílvia Ortoff e Monteiro Lobato. “Temos muitos professores que começam a dar aula sem ter títulos. Muitos só têm o 2º grau e boa vontade. A grande maioria fez um curso de Letras em que a literatura infantil não constava na grade de disciplinas. Acho que a obra contribui para suprir esta lacuna.”

Inscrição em segredo
Não havia, a princípio, nenhuma ambição quanto a prêmios. “Eu vi uma notícia sobre o Jabuti e percebi que o livro se enquadrava nos critérios da premiação. Procurei a Ione para saber mais. Ela disse que era muito difícil ganhar, ainda mais com o livro saindo por uma editora de Goiás. Mas acabamos inscrevendo o trabalho apenas três dias antes de terminar o prazo. Eu disse a ela para não contar a ninguém. Nem o pessoal aqui de casa sabia”, conta, entre risos.

“Inscrevi e pus uma pedra em cima do assunto. Não tinha expectativa nenhuma. Fiquei surpresa quando o livro figurou entre os dez primeiros classificados.” Na segunda votação, a obra de Vera manteve a 3ª posição e agora, como todos os premiados com o Jabuti, concorre nesta noite ao troféu de Livro do Ano – em seu caso, na categoria de não ficção.

 

Do Rio Grande do Sul para Goiás

Em Cachoeira do Sul, cidade do interior gaúcho onde nasceu, Vera Tietzmann, descendente de austríacos da Boemia, hoje região pertencente à República Tcheca, e de alemães do vale do Reno, gostava muito de ler Monteiro Lobato, mas não imaginava que sua vida se entrelaçaria de tal modo com a literatura infantil. Daquela época, ela conserva a cadeira de balanço branca. Nela lia quando era criança. Nela leu, adolescente. Nela, lê até hoje. “Estes móveis são muito duráveis”, comenta.

“Meu pai a comprou para a minha mãe quando ela ficou grávida pela primeira vez, em 1931.” Na sala de sua casa, em um condomínio de Goiânia, também há um velho baú de madeira que pertenceu à sua bisavó e que veio da Europa em 1850, quando a família migrou para o Brasil. Seu avô, nascido na Áustria, veio para cá com 4 anos, no navio Cervantes.

Os antepassados de Vera não se encaixavam nos modelos mais comuns de imigrantes do Sul do País. Não foram trabalhar na lavoura, como a maioria, e sim exerceram funções como o de agente postal, dono de hotel, médico. “Meu avô, que foi médico de roça, mandava trazer livros da Europa. Minha avó gostava de ler os grandes autores alemães, como Goethe e Schiller. Meu avô também foi musicista e fez questão de que cada filho aprendesse a tocar um instrumento.”

Este gosto pelas artes foi alimentado por Emilio, pai de Vera. “Ele lia duas horas por dia. Minha mãe até reclamava quando havia muita coisa a fazer: ‘A gente aqui no maior aperto e o Emilio lendo!’.”

No início dos anos 1970, Vera fez uma viagem à Espanha. Pouco antes do embarque, ela conheceu alguém que tinha o mesmo destino. Era o advogado Jônathas Silva. Casaram-se em 1973 e ela veio com o marido para Goiás. Tiveram três filhos.

José Antônio, o mais velho, de 34 anos, e o caçula, João Marcos, de 29, seguiram a carreira do pai, que é professor de Direito da UFG e já ocupou a pasta da Segurança Pública no governo de Marconi Perillo. O filho do meio, Rodrigo, 31, trabalha no ramo imobiliário. Mesmo tendo pais ávidos por leitura, apenas o primogênito adquiriu, para valer, o hábito. “Ele faz como meu pai. Se senta na cama, cobre as pernas com um lençol e lê horas seguidas”, conta Vera. “É um estudioso”, reforça o pai, que também tem uma cadeira de balanço para devorar seus livros.

Ao chegar a Goiás, Vera deu aulas de português no Lyceu e de inglês na Universidade Católica. A chance de ingressar na UFG apareceu em 1979. “Entrei como professora colaboradora, porque não havia concurso na época. No ano seguinte, depois da primeira greve dos professores, o governo efetivou quem estava trabalhando e estabeleceu a regra do concurso para futuras contratações.”

A UFG foi uma das primeiras instituições a implantar a disciplina de literatura infantil em sua grade e Vera, com a amiga e professora Zaíra Turchi, encarou o desafio. “Se tivesse ficado no Rio Grande do Sul, não teria as oportunidades que tive aqui. Os goianos são generosos, abrem todas as portas para quem vem de fora. Não acho que isso seja tão certo. As pessoas que são do local também merecem ser valorizadas.”

 

Dois novos livros em dezembro

Vera Tietzmann também é uma crítica respeitada em literatura brasileira, com especial atenção para a obra de Lygia Fagundes Telles. Ela já publicou dois livros com análises e estudos sobre o trabalho literário da autora de As Meninas. O terceiro título, o mais completo, talvez o definitivo, deve ser lançado no mês que vem. O livro, chamado Dispersos e Inéditos – Estudos Sobre Lygia Fagundes Teles, que também vai sair pela Editora Cânone, trará um apanhado completo sobre os contos da escritora paulista.

“Fiz um levantamento em diversas fontes e encontrei 190 referências de trabalhos críticos publicados sobre a obra da Lygia”, relata Vera. “Percebi que a produção de teses e dissertações sobre sua literatura tem aumentado nos últimos dez anos. Isto é muito bom e coloca a Lygia em seu lugar merecido. Os gatinhos, que nasceram ceguinhos, começam a abrir os olhos”, brinca a professora, fazendo referência aos animais por quem Lygia nutre notório amor.

Organização dos contos
Um dos grandes destaques deste novo livro, sobretudo para quem deseja fazer pesquisas sobre as narrativas mais curtas de Lygia, é a organização, até hoje inédita, dos contos da escritora. Este trabalho apresenta uma dificuldade adicional, uma vez que muitos destes contos são reescritos em algumas de suas passagens, republicados pela autora e apresentados como inéditos.

“Isto é recorrente na produção da Lygia e denota, possivelmente, que estas narrativas são as suas preferidas. Há um conto, chamado O Menino, que foi publicado pela primeira vez em 1948 e ainda hoje aparece em suas obras mais recentes.” De acordo com Vera, há casos em que o conto reaparece até 12 vezes. “Neste livro, eu informo o ano da primeira publicação de cada conto e em quais livros e antologias ele reaparece. Para quem se debruça sobre a obra da autora, são dados que vão facilitar muito a pesquisa.”

Obra de apoio
Para poder compor a obra, Vera Tietzmann garimpou textos e estudos há muito fora de catálogo. Ela também incluiu no volume uma palestra que ministrou na Academia Brasileira de Letras sobre a escritora e que só estava disponível em gravação de áudio nos arquivos da ABL. Há ainda textos sobre as antologias de Lygia e a respeito de sua obra memorialística.

Vera vai lançar ainda outro livro didático, Leitura Literária & Outras Leituras – Impasses e Alternativas no Trabalho do Professor, pela editora mineira RHJ e que propõe ser uma obra de apoio para o professor. “Ele foi pensado para quem leciona no ensino médio, mas pode interessar a professores de outros níveis. Há na obra um capítulo que fala sobre como lidar com alunos fora dos padrões esperados, como os que têm alguma deficiência, os desmotivados, os que chegam cansados para o ensino noturno”, exemplifica.