“A filosofia na escola é um ato de democracia”

Professora do Instituto de Educação da Universidade do Minho, em Portugal, com um doutorado em Filosofia da Educação pela mesma instituição, Custódia Alexandra Martins tem uma larga experiência na formação de professores de filosofia. Recentemente, ele esteve em Goiânia para ministrar uma palestra na UFG, de onde seguiu para Pirenópolis, para participar como uma das conferencistas do 4º Colóquio Internacional Rousseau – Festa e Representação, realizado no início de junho e que reuniu pesquisadores do Brasil e do exterior para discutir a obra do pensador genebrino cujo tricentenário de nascimento foi comemorado o ano passado. Custódia é uma especialista na obra de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), em especial na vertente pedagógica do pensamento do autor, que deixou um grande tratado sobre a educação, o clássico Emílio. Nesta entrevista ao POPULAR, a professora portuguesa fala da importância da disciplina de filosofia na grade curricular, discorre sobre a formação dos professores da área e discute a atualidade do legado de Rousseau na reflexão sobre o sistema educacional atual. Confira:

 

O que ensino de filosofia, no ensino médio, deve privilegiar?

O ensino de filosofia, no ensino médio, deve privilegiar, antes de mais, o aluno. Em que sentido? No sentido da formação crítica do pensamento do aluno. Isto em termos reais. Por outro lado, o ensino de filosofia no ensino médio também deve valorizar o próprio professor de filosofia. Respondendo de uma forma mais sintética, o ensino de filosofia no ensino médio deve conjugar a articulação da formação educador/educando, professor e aluno. O professor deve ser aquele que ensina, mas também deve ser aquele que forma. A vertente da instrução das matérias a ensinar e a vertente da formação devem estar articuladas. Porque não nos interessa apenas ter alunos que dominem as matérias, mas que depois não saibam tirar proveito dessas matérias. O conhecimento só faz sentido se soubermos aplicar esse conhecimento, se esse conhecimento nos for útil. E útil não é no sentido pragmático de ganhar dinheiro. Também é, com certeza, que é fundamental. Mas útil no sentido de nossa capacidade de agir e interagir na sociedade. A filosofia, aí, tem um papel importante, através da reflexão crítica, de um pensamento autônomo, de um pensamento reflexivo, de uma prática dessas três dimensões na prática da cidadania.

 

No Brasil só muito recentemente é que a filosofia foi reintroduzida no ensino médio. Na opinião da senhora, o que a filosofia contribui para a formação do aluno e como deve ser a interlocução da filosofia com as outras disciplinas?

Nós, indivíduos, pertencentes a uma sociedade, se não tivermos a capacidade de analisar, pensar problemas, e avançar com propostas, o que nós fazemos na sociedade? Acabamos por ser joguetes de outros. A disciplina de filosofia estar num programa de escola é um ato de democracia. E nesse sentido parece-me de fato essencial que os alunos de filosofia, ou melhor, que os professores sejam capazes também de processar essa finalidade da filosofia. Não é algo em que somente se aprende matérias, umas coisas estranhas que os filósofos disseram. Não. O que essas matérias têm a ver com os nossos dias, para que elas servem? Eu penso que há uma relação de transversalidade. Repare, todas as disciplinas são dirigidas para o mesmo centro, que é a pessoa. Todas as disciplinas são dirigidas para o mesmo centro, para o educando. A disciplina que consegue pensar essas disciplinas e a função dessas disciplinas é a filosofia. Portanto, nesse sentido, ela não só é transversal, por que há ali o elemento comum, que é a pessoa, o futuro cidadão. Mas ela é a disciplina que deve possibilitar, que deve promover a capacidade de pensar de todas as outras disciplinas. Vamos a exemplos concretos. Vamos pensar na economia. Qual é a relação entre a economia e a filosofia? Ah, não sei muito bem o que os números têm a ver com as letras. Embora, a economia não seja só números, como é óbvio. Nós, de filosofia, não temos de entender as teorias econômicas para falar de economia. Agora, o ponto é que nós vamos estabelecer um pensamento, vamos inaugurar um raciocínio, que nos permita perceber o que está por trás dessas teorias econômicas que nos são apresentadas. Nós temos que olhar para a realidade, questionar a realidade, questionar a economia, a medicina, e aqui, quando falo da medicina, falo de questões mais concretas, a questão da ética, a questão do aborto, a questão da eutanásia, a filosofia tem de estar lá. Não que vá nos ensinar nada, que vá nos dar uma receita, que vá dizer como as coisas são e não são. Mais vai nos preparar para estarmos atentos, para não cairmos em ilusões.

 

Mas por ter essa abrangência, a filosofia também requer dos professores dessa disciplina uma visão também mais ampla. Não sei se a senhora conhece a realidade brasileira, mas, de uma forma geral, a senhora percebe essa característica nos professores de filosofia do ensino médio?

Eu penso que, quando você fala dessa abrangência da filosofia, está a referir num sentido holístico. É evidente que, como em todas as profissões, como em Portugal, como aqui no Brasil, como em qualquer outro país, nós temos profissionais e profissionais. Em termos de teoria da educação, há uma teoria que nos diz que há três imagens de professor: um professor autoritário, um professor permissivo e um professor democrático. Ora, essas três figuras de professor englobam também em si a capacidade que o professor tem de responder às perguntas pertinentes que os alunos fazem. É evidente que podemos ter professores com um caráter muito fechado, e que de fato são professores de filosofia, mas não a põem em prática, porque ou não sabem ou avisam que o tema de filosofia não é esse. Há professores que olham para a filosofia como instrução, como transmissão de conhecimentos. Na medida em que acham que podem se tornar professores, eu só tenho que ir à sala de aula, ensinar o que disse aquele autor, Kant ou Rousseau ou Platão, e portanto sou muito objetivo. Eu não interfiro, ao ser neutro. Está a se escusar ou, por incompetência, ou por falta de coragem de expressar a sua opinião, ou simplesmente porque não tem opinião. Eu sou orientadora de estágio e tem me passado pelas mãos futuros professores em que estas tendências estão lá, tem os que não querem se comprometer, aqueles que se comprometem e também temos o oposto, aqueles que pensam que a filosofia é só para dar opiniões, e que a parte da instrução não é necessária. Portanto, aí também há um desequilíbrio. Nesse sentido, um bom professor de filosofia deve ser aquele que é capaz de articular a instrução com a formação, o seu saber com a pertinência das perguntas que a sociedade lhe faz através dos seus alunos.

 

A senhora trabalhou em seu doutorado com a obra de Rousseau. O que o Rousseau pedagogo pode contribuir para a discussão do ensino de filosofia?

O Rousseau é um autor muito exigente com ele próprio. E sendo muito exigente com ele próprio, ele é muito exigente com a sociedade. E eu entendo essa exigência do Rousseau e, nomeadamente , vou tratar dessa ideia, porque é a mais conhecida e talvez não é muito entendida em Rousseau, que é a questão de dizer que o aluno – a criança, quer dizer – deve ser afastado da sociedade para não ser corrompido. O que ele está a dizer não é que vamos afastar as crianças da sociedade. Ele está a usar uma metáfora para dizer isto: vamos fazer com que a criança desde cedo não seja educada numa ilusão daquilo que é correto. E aquilo que é correto é aquilo que a sociedade lhe transmite. Vamos afastá-la, deixá-la perceber aquilo que é natural em si e trazer esse natural que há em si e essa capacidade de ver a sociedade por detrás das máscaras. Numa palavra, volto a referir, Rousseau, ao dizer isto, apela diretamente para o espírito crítico, mas um espírito crítico fundamentado. Ou seja, para o não politicamente correto.

 

Ainda sobre Rousseau, uma crítica que ele fazia ao, vamos chamar, ensino convencional da época dele é que este não respeitava a criança na criança, exigia que a criança se comportasse como pequenos adultos. O ensino de hoje ainda comete este mesmo erro apontado por Rousseau?

Eu penso que sim, mas não só com a criança, mas também com os próprios adultos. A sociedade de hoje ainda é, e de forma muito acentuada, uma sociedade de faz de conta. E quando falamos em sociedade, temos de chamar as coisas pelo nome, a sociedade não é uma entidade abstrata, a sociedade somos nós. E todos nós desempenhamos um papel de atores. E aí que o Rousseau entra com um elemento importante para alertar os jovens para este perigo. Não é para os proteger dos perigos, para os retirar desse perigo. È para, quando eles estiverem na sociedade, quando eles olharem para a sociedade, perceberem que podem correr o risco de estarem a dizer o modo da encenação.

 

 

“Não nos interessa apenas ter alunos que dominem as matérias, mas que depois não saibam tirar proveito dessas matérias. O conhecimento só faz sentido se soubermos aplicar esse conhecimento, se esse conhecimento nos for útil. E útil não é no sentido pragmático de ganhar dinheiro. Mas no sentido de nossa capacidade de agir e interagir na sociedade”

Fonte: O Popular