O cinema do desconforto
O cinema do desconforto
Cine UFG passa a exibir a partir de segunda Mostra de filmes do dinamarquês Lars Von Trier
Carolina Soares
Especial para O POPULAR
"Trabalho para mim mesmo. Não devo satisfação a ninguém. Não tive escolha. Foi a mão de Deus, eu temo. E eu sou o maior diretor de cinema do mundo. Não sei se Deus é o melhor Deus do mundo." A declaração de Lars Von Trier, quando questionado sobre o sentido de Anticristo, seu último filme, resume um pouco sua personalidade polêmica e provocadora. O diretor dinamarquês, conhecido por seus filmes densos, impregnados de uma visão pessimista do mundo e do ser humano, descreve a si mesmo e a seus filmes como "uma provocação".
Seu cinema é uma maneira de desafiar o público, jogando-o de encontro a um universo ficcional em que o mal está sempre presente, de forma brutal e definitiva. Cada filme seu é antes uma composição de fragmentos significativos do que uma narrativa a ser "entendida" ou, ainda, "explicada".
Lars Von Trier é um diretor do desconforto, de um "cinema da crueldade" pós-moderno, cujo sadismo é justificado pelo objetivo de revelar ao espectador a crueza do mundo, assim como a sua própria crueldade, intrínseca à condição do ser humano. Os filmes de Trier mostram como o homem é o principal devorador do homem, como os bons sentimentos podem ser belos, mas redundam num nada de incompreensão pelos outros homens. As personagens do diretor, ora indiscutivelmente alegóricas, ora misteriosas, retratam a miséria do mundo em uma crescente de suplícios e violência (seja ela física ou psicológica) a que são submetidas.
Dogma 95
Em parceria com Thomas Vinterberg, Trier criou o movimento Dogma 95, a partir de um manifesto elaborado por ele e outros cineastas dinamarqueses, que propunha um rompimento com o preciosismo técnico e o predomínio das grandes produções. O manifesto criticava tanto o cinema clássico quanto o cinema moderno: o primeiro representado pela produção hollywoodiana e seu ideal "ilusório" e "cosmético" do cinema e o último englobando a política dos autores, a nouvelle vague e o cinema moderno herdeiro desses movimentos, que, segundo o manifesto, eram também uma ilusão, pois "o conceito de autor era um romantismo burguês desde o começo".
O movimento propõe como solução um cinema que negue a autoria e ressalte a história e as personagens, por meio de uma estética mais "real", destituída do ilusionismo técnico e constituída de imagens que não são transparentes para o espectador. Sob o plano técnico, o manifesto prega a proibição de toda forma de artifício e de jogo com o espaço-tempo (o filme deve se passar aqui e agora), assim como exige a utilização da luz e do som natural dos ambientes.
O filme de Lars Von Trier que materializou as determinações do Dogma 95, Os Idiotas, de 1998, estarreceu o público e a crítica, mostrando que sua proposta conforme os mandamentos poderia, de fato, resultar em uma história interessante e coesa. Embora apresentem elementos propostos pelo Dogma 95, grande parte dos filmes do diretor feitos após o manifesto não é totalmente fiel ao movimento. Há críticos que até afirmam ser o cinema de Lars Von Trier, em sua essência, um cinema de autor. Trier, em entrevista, declarou que cada um de seus trabalhos pede sua própria estética.
Independentemente das controvérsias, o Dogma 95 teve e tem grande importância para o cinema contemporâneo, até mesmo porque, em uma época em que tudo é válido no cinema, a própria publicação de um manifesto foi em si uma provocação. Apesar de fundador e membro do Dogma 95, a carreira de Lars Von Trier como diretor - ou mesmo autor, como se poderia arriscar a dizer -, de certa maneira, eclipsou o impacto do movimento no meio cinematográfico.
Depois de Os Idiotas, segundo filme da trilogia Coração de Ouro (o primeiro foi Ondas do Destino, de 1996), baseada em um conto de fadas dinamarquês de mesmo nome, Trier produz Dançando no Escuro (2000), que fecha a trilogia. No conto, uma menina sempre se sacrifica para ajudar os outros, sem pensar em si. Nos filmes, mulheres inocentes e abnegadas, quase "santas", ou quase "bobas", sacrificam-se e são massacradas pela maldade daqueles que as cercam. Nessas histórias, a santidade está sempre oposta à baixeza moral e aos valores mundanos, que prevalecem sobre o bem.
No musical dramático Dançando no Escuro, estrelado pela cantora Björk, Selma, uma imigrante tcheca nos Estados Unidos, está ficando progressivamente cega em razão de uma doença e se sacrifica para tentar conseguir que o filho, herdeiro da mesma doença, seja operado. Enquanto sofre, Selma sonha com um mundo mais bonito, aquele dos musicais clássicos, repletos das cores que ela enxerga cada vez menos. Para fugir da crueza da realidade, ela escapa para esse mundo de fantasia, tão diferente do seu.
Quando são retratadas as cenas da vida real da personagem, os recursos técnicos utilizados para criar um clima próprio de grande frieza são aqueles já muito vistos na obra de Trier: a câmera de mão, as imagens tremidas e os cortes secos. Entretanto, no mundo de sonhos, todos os ângulos das cenas de dança transbordam cores aos olhos dos espectadores, que sentem o alívio momentâneo da personagem, e saem compenetrados do mundo apagado de Selma.
Essas cenas têm na trama a mesma função do coro nas tragédias gregas: são uma análise, um comentário sobre a ação. A história de Selma tem um caráter de melodrama, quebrado por essas cenas musicais que acontecem em sua mente e o espectador experimenta junto com ela. A tragédia é iminente e inevitável: sabemos que o destino da personagem não será o happy end dos musicais.
PROGRAMAÇÃO
Segunda-feira, dia 14
12h - Dogville
17h30 - Anticristo
Terça-feira, dia 15
12h - Manderlay
17h30 - Dançando no Escuro
Quarta-feira, dia 16
12h - Dançando no Escuro
17h30 - Anticristo (seguido de debate com Adele Lazarin, Carolina Soares e Fabrício Cordeiro)
Quinta-feira, dia 17
12h - Dogville
17h30 - Manderlay
Sexta-feira, dia 18
12h - Anticristo
17h30 - Dogville
Local:Cine UFG, Câmpus 2 da Universidade Federal de Goiás
Nova proposta estética
Com Dogville, lançado em 2003, Lars Von Trier inicia uma nova trilogia: EUA - Terra das Oportunidades. Como em várias tramas do diretor, a história se inicia com uma personagem frágil que é acolhida por uma comunidade e, pouco a pouco, vai se tornando mártir, uma mulher à mercê de uma sociedade cruel, que, em face de sua elevação moral e benevolência, transforma-a em vítima de seus impulsos mais vis. O elemento novo nessa história é a vingança, consumada como o reverso do mal.
Em Dogville, o diretor criou o conceito de "filme fusão", em que uniu elementos da linguagem da literatura, do cinema e do teatro. Para criar o conceito principal do filme, afirmou ter se inspirado no "teatro épico" de Brecht. A estética do filme configura-se um pouco como um "teatro filmado", em que Trier dispensou os cenários e ambienta a cidade cenográfica apenas com marcações no chão e alguns móveis.
Assim como no teatro, personagens abrem e fecham portas imaginárias e a ação acontece simultaneamente em vários lugares. À nova proposta estética, juntam-se, no filme, os elementos que consagraram o diretor dinamarquês, como o jump cut, a câmera na mão, os closes no rosto das personagens e a atuação estilizada. Embora possa ser considerado uma alegoria ou fábula política, Dogville é, em última instância, mais do mesmo existencialismo cáustico de Lars Von Trier, em que qualquer ato, seja nobre ou abjeto, redunda na mais absoluta insuficiência.
Em Manderlay, segundo filme da trilogia sobre os Estados Unidos, a personagem principal é a mesma de Dogville, mas o enfoque de Lars Von Trier e, em consequência, o envolvimento que ele requer do espectador quanto aos acontecimentos na tela são inteiramente diferentes. Em Dogville, a princípio, nada se sabe a respeito de Grace, que emerge como a típica heroína melodramática: mulher frágil e sofrida, que enfrenta a população hostil que, depois de a acolher, abusa dela para, finalmente, expulsá-la da cidade a fim de reintroduzir a ordem.
Com Manderlay, dá-se o contrário, pois o diretor trabalha justamente a partir da lembrança que a plateia tem do original. Von Trier não força a identificação sentimental com a protagonista para, ao final, revelar a verdade cruel, como em Dogville, mas antes parte do conhecimento desta verdade a fim de gerar o distanciamento que, afinal, está pressuposto na ausência de cenários, na explícita marcação teatral e na narração irônica, assim como está pressuposto em sua inspiração, o teatro de Brecht, Polêmica
Anticristo, o filme mais recente do diretor, é uma das mais polêmicas obras dos últimos tempos, dividindo público e crítica em opiniões que vão do horror à adoração. O impacto do filme em Cannes foi alardeado pela imprensa do mundo todo e consagrou Lars Von Trier, mais uma vez, como um grande provocador.
Anticristo conta a história de um casal que perde o filho e decide se isolar em uma floresta para tentar se curar da dor. A partir daí, o filme torna-se progressivamente violento e perturbador, e o sadismo das imagens tem força e impacto aterrador. O filme está repleto de referências e simbolismos, em uma experiência calcada no poder da imagem, como não se via há muito tempo no trabalho de Von Trier. Existe, na iconografia de Anticristo, inegável significação, goste-se ou não do resultado.(CS)▩