As mentalidades estão mudando

Jornal O Popular, 04/03/07

Entrevista: Luiz Mello

‘As mentalidades estão mudando’

Manter relacionamentos amorosos ainda é, em termos legais, uma prerrogativa restrita aos heterossexuais. Para o sociólogo Luiz Mello, professor da Universidade Federal de Goiás (UFG), esta é a marca da opressão sexual que atinge gays e lésbicas no Brasil e na maior parte do planeta. Atualmente, Luiz Mello realiza estágio pós-doutoral na Universidade Complutense de Madri. Em entrevista por e-mail ao POPULAR, o sociólogo falou sobre a decisão da justiça goiana e lamentou que o crescimento da conscientização da sociedade brasileira em relação ao reconhecimento legal dos direitos conjugais de gays não seja acompanhado na mesma proporção pela diminuição da violência homofóbica. Confira trechos:

Como o senhor analisa o não-reconhecimento das
relações amorosas entre gays e entre lésbicas no Brasil?
As lutas dos gays pela conquista de legitimidade social e amparo legal para suas relações amorosas apontam para questionamentos profundos do ideário de família conjugal moderna. O que se observa é a crescente afirmação do entendimento de que a conjugalidade homossexual constitui uma das novas formas de institucionalização de vínculos familiares no Brasil. Daí talvez advenha o temor de que o ingresso dos homossexuais na esfera das práticas social e juridicamente definidas como familiares possa radicalizar ainda mais a “crise da família”, objeto de tantos discursos entre os defensores de um modelo de família com pretensões de validade universal, que reagem com indignação às transformações que os próprios heterossexuais já vêm produzindo em suas famílias.

Em uma decisão inédita no País a Justiça goiana
reconheceu uma relação homossexual como
entidade familiar. O que muda a partir desse fato?
Esta e outras decisões judiciais significam um avanço muito positivo na forma como o Judiciário tem respondido às demandas de casais de pessoas do mesmo sexo, mas ainda fazem parte do campo do extraordinário e estão na dependência da boa vontade e da liberalidade dos juízes. Não é à toa que um conjunto contraditório de decisões já pode ser mapeado, com direitos sendo negados e afirmados, por instâncias diferentes da justiça e em distintos Estados do País. Não restam dúvidas, porém, de que cada vez mais o Judiciário no Brasil vem tendendo a assegurar direitos conjugais e parentais a lésbicas e gays.

Quais são as especificidades de um casamento gay?
Casais de homens e casais de mulheres geralmente estruturam suas relações com base em reapropriações diferenciadas das definições sociais do que é próprio a cada um dos sexos, havendo uma tendência no sentido de que questões como a divisão das tarefas domésticas, a gestão dos recursos financeiros, o exercício da parentalidade, a estruturação das práticas sexuais, os acordos em torno da monogamia e da fidelidade, bem como a duração do vínculo conjugal, sejam geridas de modo diferente, a partir da forma como vivenciam as relações.

Qual sua opinião sobre a adoção de crianças por casais gays?
São inúmeras as variáveis que influenciam o processo de socialização da criança (classe social, escolaridade dos pais, local de moradia, religião, nacionalidade), sendo a orientação sexual dos pais apenas uma delas, a meu ver, não a mais importante, particularmente quando se sabe que o desenvolvimento psicossocial das crianças é fortemente marcado pelo tipo de vínculo que une o casal e pela qualidade da relação que os pais estabelecem com os filhos. Não há evidências científicas de que crianças filhas de gays e lésbicas tenham qualquer característica de personalidade ou de comportamento que as coloque em desvantagem quando comparadas às crianças socializadas por indivíduos ou casais heterossexuais. Quanto à falta de referenciais femininos ou masculinos, isso é puro preconceito, já que as crianças não vivem isoladas numa bolha de plástico e têm acesso a diferenciados modelos de masculinidade e de feminilidade. O que eu me pergunto é por que essa perspectiva homofóbica em relação à homossexualidade potencial de crianças socializadas por gays e lésbicas ainda é tão presente. Afinal, homossexualidade não é crime no Brasil desde 1823, homossexualidade não é doença e pessoas homossexuais são tão inteligentes, criativas, sociáveis, saudáveis, chatas, egocêntricas ou levianas quanto as pessoas heterossexuais.