Maturidade cultural e desenvolvimento

Jornal O Popular, 25/03/2007

Maturidade cultural e desenvolvimento

Marilena Chauí afirma que a maturidade cultural de um povo está atrelada à compreensão de que ele é formado por sujeitos culturais e que privilégios, carências, exclusões e opressões não são naturais nem determinados pela Providência Divina. Esse conceito ampliado de cultura, para além de sua identificação com as belas artes (na referência das artes servis e artes liberais), entende que as questões culturais estão na base das noções de democracia e desenvolvimento.

Annunziata Spencieri de Oliveira

A cultura é um legado da humanidade. Nela estão congregadas as características de cada povo ou nação, da vivência social, da consciência individual, de conhecimento, de memória, de transformação de desempenho, de mercado, de vida, enfim. Talvez por isso sua importância seja sentida por todos os homens a partir mesmo da consciência de que somos humanos. A importância do legado cultural é sentida até como preservação da espécie e se manifesta desde a forma mais simples de transmissão de conhecimento de pai para filho, até as formas mais elaboradas e acadêmicas, dirigidas por instituições direcionadas a uma comunidade maior, na forma de difusão desse legado.

É no processo de formação das nações modernas, dominadas pela estratificação social, que se estabelecem as preocupações concretas para com a cultura, as reflexões formais sobre o termo e sobre a produção de ações culturais, o que traz, à luz da consciência, aquilo que sempre esteve camuflado em todos os tempos: a questão do domínio e do poder. Aquele que detém o legado cultural detém a autonomia de si mesmo e do grupo.

Alguns anos atrás, durante um congresso de países de língua portuguesa, ouvi, com admiração e respeito, um intelectual de São Tomé e Príncipe afirmar que a sua maior preocupação em relação ao seu país, àquela época, era a forma rápida e desordenada de crescimento que ele assumia pela descoberta de petróleo e outras riquezas naturais. Dizia que o povo, recentemente vivenciando a sua independência, não estava culturalmente preparado para captá-lo e não havia políticas culturais que pudessem ampará-los: ao povo e ao desenvolvimento.

A maturidade cultural de um povo leva-o a produzir um Estado Democrático capaz de não reduzi-lo apenas a um espectador do seu desenvolvimento, mas de fazê-lo agente cultural dessa ação; leva-o a conquistar culturalmente seus espaços e a não se satisfazer com esmolas governamentais. É a maturidade cultural de um povo que o faz alcançar a sua autonomia e congrega-o como massa crítica de uma nação, participando, inovando e construindo seu destino. E aí se forma um círculo vicioso tal qual aquele que se faz na produção artística: só a fruição da arte permite ao homem desenvolver a sua capacidade criativa, mas é a consciência da necessidade dessa vivência que o leva até ela. Só a maturidade cultural gera o Estado Democrático, mas é o Estado Democrático que permite ao povo atingir, mais rapidamente, a maturidade capaz de gerá-lo.

Produzir cultura numa sociedade como a contemporânea, em que a tecnologia permite uma rápida transmissão e congregação de povos, é responsabilidade que exige alta postura ética e democrática. O caráter de elo de civilização que a cultura traz hoje faz dela o principal veículo de equilíbrio individual e, portanto, social. Ela é o instrumento capaz de levantar bandeiras, criar, transformar e matar idéias. Por isso, deve ser cuidadosamente tratada no interior de governos legítima e democraticamente constituídos, para que faixas de puro e simples mercado não decidam quais são as necessidades do povo, nem contribuam para a destruição gradativa do legado criado pela humanidade.

O povo tem o direito nato de acesso aos bens culturais, porque eles surgiram do âmago da sociedade, e a acessibilidade a esses bens lhe deve ser concedida por políticas públicas que lhe permitam vir a reconhecer-se e agir como sujeito cultural capaz de invenção de símbolos, valores, idéias e comportamentos. Políticas que reduzam a dicotomia entre as noções de cultura popular e de elite (ou erudita) pela noção de produção inovadora, seja de novos produtos e prática culturais, seja de manutenção da cultura da humanidade, ou de formulação de novos destinos para a nação; políticas públicas que dêem possibilidade ao povo de alcançar as decisões sobre a cultura por meio de conselhos, secretarias de cultura e fundos de cultura; políticas que reconheçam a importância do papel do Estado na prestação de serviços públicos culturais (escolas de arte, criação e manutenção de bibliotecas, museus, discotecas, arquivos históricos, videotecas, e acesso gratuito a todos esses bens), para que as atividades culturais não fiquem sujeitas ao poder da mídia. O que é naturalmente do povo só pode voltar a ele como bem público.

Assim como a capacidade de criação e apreciação da obra de arte será conquistada em dado momento pela sua simples fruição, a maturidade intelectual do povo será alcançada. Cumpre tomar a decisão de acelerar o processo ou deixar que ele aconteça espontaneamente. Uma sociedade em que as questões culturais são conscientemente vivenciadas é uma sociedade que gera a possibilidade de crescimento de mercado, de movimentação de riquezas, de estabelecimento de cidadania, de alcance de autonomia, pois ela terá se formado como uma sociedade crítica, criativa, reflexiva e ativa, capaz de movimentar-se. Essa sociedade surgirá e com uma cultura política inovada. Cumpre ao Estado (Nação) decidir ser o mero espectador de seu surgimento ou ser o lastro mobilizador em que esse povo cresce como seu interlocutor.

Annunziata Spencieri de Oliveira é coordenadora de Arte e Cultura da UCG; musicista, ex-professora da UFG; doutora em teoria literária pela Unesp; membro da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás