Viagem poética

Jornal O Popular, 17/04/2007

Viagem poética

Em Viagem da Tarde, o escritor goiano Manoel Bueno Brito, o Nequito, navega pela vida e pela poesia

Rogério Santana
Especial para O POPULAR

Acaba de ser editado o segundo livro de poesia de Nequito (Manoel Bueno Brito), Viagem da Tarde (Editoras Vieira e UCG). Surgido como poeta em 1989, com Candeia de Canto (Editora UFG), ele não poupou esforços para conciliar em uma obra temas que poderiam estar em livros diferentes. A beleza estética de seus poemas teve que conviver com a profusão de versos que sugeriam a idéia de um poeta bissexto, porquanto havia uma ânsia de quase tudo lá colocar. Mas logo ele daria mostras de que não era bem assim. Alguns poemas, um tempo depois, já o acompanhavam pelos ambientes acadêmicos, numa convivência silenciosa e necessária para a poética de quem um dia declarou não ter pressa autoral.

Em Viagem da Tarde, a profusão poética do livro anterior cede lugar à unidade predominante, dividida entre a viagem que é a vida e a viagem que é o poema, as duas diluídas e combinadas na poesia. No poema-manifesto A mor máquina, o poeta declara a força da vida sobre si, na passagem que anda pela tarde: “Livre, entre as pequenas coisas,/ fazes de mim o último servo,/ sem nenhuma dor a pesar-me/ na servidão que me cabe./ Tornas mais leve, afinal, e me ajudas a conduzir/ nos caminhos desta vida/ a alma que me resta,/ pesada do mundo”.

O tema da viagem-vida oscila entre a própria passagem do poeta e os fatos “presenciados” por ele. Eis que surge nessa condução o já antologiável poema Elegia a 11 de Setembro, a explorar o rasgo fundo da morte por imposição dos homens, paralela à morte por compulsão da vida. Nele, o poeta assegura: “Bem-aventurados, por inocência,/ se ainda tiveres amigo, ou navegares,/ o teu vôo é livre? em que (m) ares?”. Ao poético coube constatar que “a compaixão viria antes, mas não chegou a tempo”.

À voz poética experiente nunca será demais se encantar com as possibilidades da visão de longo alcance. Mergulhados no labirinto da própria existência, estaríamos distantes dos deuses retratados em toda literatura saudosa da complexidade da vida na palma da mão. Para o poeta, a sedução não vem do Olimpo, mas do pássaro: “segurar no bico o coração/ a contida ansiedade;/ ocultar no alto, entre névoas,/ a ronda cuidadosa;/ afastar-se, fingir viagem,/ na levitação da brisa”. No limite da natureza, estes versos conjugam a viagem da vida com a aparência de uma viagem sem percalços, estar e parecer que não está, cuidar e parecer que não cuida, passar pela vida sem os danos que no rés-do-chão são inevitáveis.

O enfrentamento dos artifícios humanos durante a viagem talvez possa ter uma síntese no poema O Passado, de concisão nevrálgica: “Agora, é tarde./ Como apagar a imagem/ e seus vultos nas bordas do quadro?// Da moldura exala a lenda antiga:/ a vida passa,/ e a criança nem foi brincar”.

A esse rigor com a própria condição de incompletude do ser humano, Nequito associa a fluidez que o verso exige no universo lingüístico, “gramática elementar da língua humana”. A palavra como matéria é “a forma,/ da norma/ à fôrma”. A palavra é o registro fóssil na sentença, mas mutação no discurso. É com estes princípios que o poeta invade o próprio ambiente da criação poética, extraindo dele as pegadas da viagem-poema. O poema é o registro opaco do que está vivo, pois “Está viva, embora muda,/ dentro das coisas, a poesia.”

O poema é a realização em linguagem, a poesia, a concepção em estado lírico. No percurso pelo chistoso, pelo irônico, o poeta acaba diante de si mesmo, e vem o poema angular Definições Elementais, em que a viagem se torna “vestígio de um corpo,/ ou sinal de que sua alma/ deixou rastros aqui.”

E ao final, no poema homônimo ao livro, o poeta pergunta: “Não é bom viajar à tarde”?, para ter a certeza logo a seguir: “Você tem a leveza da manhã/ e ouve risos ao sol claro”. Antes de negar ou mesmo renegar a viagem à tarde, o poeta reafirma a condição de humanidade que ela nos impõe. Essa condição é transformada em imagem no último poema, O Verbo e a Carne, em que os dois elementos se fundem na forma dos “objetos do dia”, representados pelo próprio verbo, cuja salvação é um dos motivos da poesia, à maneira da “lira dos 20 anos”.

Além de sua própria poesia, Nequito nos trouxe, em Viagem da Tarde, Carlos Drummond, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa, Álvares de Azevedo, Guimarães Rosa, Monteiro Lobato, Marcel Proust, Chico Buarque...
Salve o poeta!

Rogério Santana é professor do curso de Letras da UFG