Pedagogia da saudade

Jornal O Popular, 01/05/2007

Pedagogia da saudade

Nos dez anos da morte de Paulo Freire, Ana Maria, sua viúva, revela ao POPULAR detalhes da personalidade
do maior educador brasileiro do século 20

Rogério Borges

A voz articulada e lúcida de Ana Maria Freire, 73 anos, não deixa margem a dúvidas. Ela sente saudade, muita saudade de alguém que conheceu quando ainda era uma criança no Recife, na época em que estudava no colégio de seu pai. Saudade de alguém de quem foi aluna e com quem esteve casada por dez anos. “São tantas lembranças. Me lembro de sua cortesia, da sua cumplicidade e de sua capacidade em se colocar no lugar do outro. Ele era um homem tolerante, que tinha uma profunda preocupação pelo País e pelos brasileiros.” Assim esta doutora em Educação pela PUC de São Paulo define Paulo Freire, considerado por muitos como o maior educador que o Brasil já teve.

Perfil
¤ Paulo Freire nasceu no Recife em 19 de setembro de 1921. Filho de uma família de classe média, logo na infância viu seu padrão de vida decair bruscamente, vivendo um período na pobreza. Isto serviu para que percebesse a necessidade de educação dos mais carentes, germe de sua preocupação constante com o aprendizado dos pobres. As dificuldades não o impediram de ingressar na Universidade do Recife para estudar Direito. Seu primeiro casamento, com Elza Maia Costa de Oliveira, ocorreu em 1944 e com ela teve cinco filhos. Trabalhando em diversos departamentos da universidade, ele foi duramente perseguido, preso e exilado pelo regime militar. Lá fora, seu prestígio cresceu com as primeiras publicações sobre educação. Foi convidado a ser professor da Universidade de Havard. Seu retorno ao Brasil aconteceu apenas em 1980, logo se filiando ao PT. Na gestão de Luiza Erundina na Prefeitura de São Paulo, foi nomeado secretário da Educação, implantando muitas de suas idéias libertárias na rede municipal da maior cidade brasileira. Socialista-cristão, Paulo Freire ocupou cargos importantes e se destacou como educador popular. Após a morte de Elza, casou-se com Ana Maria Araújo Freire, com quem viveu até morrer a 2 de maio de 1997, em São Paulo.

Amanhã completam-se 10 anos de sua morte, mas para Ana Maria parece que foi ontem. “Foi uma perda muito dolorosa para mim. Mas aí as pessoas começaram a me perguntar sobre o que faria com a obra ainda inédita dele, como administraria este espólio. Começaram a me cobrar as publicações. Mergulhei neste trabalho. A obra do Paulo me tirou deste período tão difícil.”

Em testamento, Paulo Freire delegou a Ana Maria, com quem se casou em 1988 depois de ambos ficarem viúvos dos primeiros cônjuges, a missão de cuidar de seu legado. Em vida, o educador lançou dezenas de livros, entre os quais se destacam Pedagogia do Oprimido, Por uma Pedagogia da Pergunta e Pedagogia da Autonomia, o último que teve a oportunidade de autografar, no final de 1996. Nestas muitas obras e em suas incontáveis palestras e conferências, Paulo Freire disseminou idéias revolucionárias no campo da educação.

“Ele criou uma epistemologia, um campo próprio de conhecimento, e daí um método”, explica Ana Maria. E um método que encarava o aluno não como uma esponja pronta a absorver informações. “Paulo pregava o respeito ao conteúdo que o aluno levava para a sala de aula, a valorização do saber empírico e pessoal de cada um”, acrescenta a viúva, que mora em São Paulo.

Vendas
Segundo informações de Ana Maria, Pedagogia da Autonomia vendeu nada menos que 900 mil exemplares apenas no Brasil, sem contar as inúmeras traduções da obra. Uma vitoriosa carreira que se repete com outros títulos. “Já recebi edições em chinês, coreano, russo, indonésio. Paulo continua vendendo tanto por sua grande capacidade de ser humanista justamente num momento em que a humanidade não sabe o que fazer do futuro. Um dos caminhos é buscar respostas numa filosofia da pedagogia que mostre que não somos feitos para a inveja, para a destruição. Isso Paulo sabia mostrar”, prossegue ela.

Um ensinamento que ainda não se esgotou. Depois da morte do educador, Ana Maria, ou Nita, como ele carinhosamente a chamava, reuniu escritos deixados pelo educador e lançou outros livros, como Pedagogia da Indignação – Cartas Pedagógicas e Outros Escritos, Pedagogia dos Sonhos Possíveis e Pedagogia da Tolerância, todos lançados pela Editora da Unesp. Caminho se Faz Caminhando, lançado pelo autor apenas nos Estados Unidos, ganhou edição póstuma no Brasil.

Todo esse acervo poderia ser ainda maior, de acordo com a própria viúva. “Paulo era um pouco descuidado. Ele emprestava originais, alguns foram para editoras e nunca mais retornaram”, queixa-se. E aí está mais uma particularidade do modo de trabalhar de Paulo Freire. Ele nunca sequer datilografou uma única página de sua produção. O autor escreveu toda aquela montanha de texto de próprio punho, em uma caligrafia caprichada. Cada momento inspirado – e eles foram muitos – de sua redação saiu de primeira, sem maiores ensaios.

“É um texto belíssimo já no original”, elogia Ana Maria. Para ela, nesta década sem o marido, algo pôde ser percebido. “O interesse por ele é maior hoje do que quando era vivo. Paulo buscava a educação política, aquela que é transformadora. Para que isso aconteça, precisamos resolver os problemas de hoje para que possamos ter um amanhã melhor. O ensino no Brasil ainda está muito longe do que queremos, mas temos bons exemplos em escolas públicas”, atesta. “Temos que investir na formação do educador.” Dar um salto de qualidade em nossa educação por meio de idéias democratizantes, um sonho freiriano. Utopia? Para Ana Maria, sim, no melhor sentido da palavra. “Ele era utópico, claro, mas tinha aquela utopia da esperança.”