Universidade Nova: Casa das Culturas

Portal Andifes, 04/05/2007

Universidade Nova: Casa das Culturas

Naomar de Almeida Filho, Reitor da UFBA

Uma das principais motivações do movimento Universidade Nova consiste no resgate da universidade como casa das culturas. Na conjuntura brasileira atual, a universidade às vezes consegue cumprir sua função de formar profissionais tecnicamente competentes, mas permite que os alunos saiam dela incultos. Para retificar tão grave lacuna, defendemos a reestruturação radical da arquitetura curricular da educação superior, introduzindo temas relevantes da cultura contemporânea. Porém, considerando a multi-culturalidade do mundo, não deveríamos pensar em culturas, no plural?

No momento crucial de constituição da modernidade, a escolástica medieval foi traduzida na idéia de humanidades, corpo de saberes pertinentes ao conjunto dos homens livres, como uma primeira definição unificada de cultura. As disciplinas científicas emergem das humanidades, a partir do século XVII. Ao longo dos séculos, cresce a separação entre humanidades e pensamento científico, culminando com a ruidosa “guerra das ciências” do final do século XX, quando as ciências humanas quase foram expulsas do panteão dos conhecimentos socialmente legitimados.

Em 1959, Lord Snow ministrou uma conferência na famosa Universidade de Cambridge, sob o título As duas culturas. Esse texto tornou-se um clássico.
Reconhecia a centralidade da ciência no mundo moderno, porém denunciava o indesejável antagonismo entre ciências e humanidades. Snow depois defendeu a necessidade de uma "terceira cultura", formada por humanistas com bom conhecimento de ciência e por cientistas com forte sensibilidade às artes e humanidades, que poderiam fazer a ponte entre as duas culturas. O filósofo espanhol Francisco Fernández publicou recentemente detalhada revisão crítica dos conceitos de “terceira cultura”. Dentre as várias vertentes analisadas, Fernández descartou como simplistas propostas de tomar a filosofia ou as ciências sociais como culturas-ponte ou de fusão das ciências às humanidades, bem como avaliou criticamente a tese de unificação reducionista das humanidades às ciências.

Ao construir conceitualmente a proposta da Universidade Nova, avaliamos cuidadosamente essa questão, rejeitando liminarmente propostas tipo “terceira via”, como por exemplo conceitos de “terceira cultura” resultantes de mix teóricos, apagamento de diferenças conceituais ou apaziguamento de contradições ideológicas. Decidimos ser cautelosos em relação a idéias de integração, pontes ou fusões entre ciências, humanidades e artes, pois se trata de modos distintos de construção do mundo, que precisam ter suas especificidades respeitadas. Com esse espírito, baseamos a estrutura curricular e o sistema de títulos dos Bacharelados Interdisciplinares da Universidade Nova no que identificamos como principais eixos estruturantes dos saberes e práticas do mundo contemporâneo.
Assim, para preencher os requisitos da formação universitária plena, todos os alunos da rede Universidade Nova cumprirão créditos em cada uma das três
culturas: Cultura Humanística; Cultura Artística; Cultura Científica.

Dessa forma, queremos ampliar o conceito de humanidades, nele introduzindo as dimensões do ecológico, da política, do desejo e do cibermundo. Pensamos que as feridas narcísicas de que falava Freud devem ser reabertas e revistas. Darwin fez do homem uma espécie vulnerável em eco-sistemas; Marx o resgatou como animal político, enfim sujeito histórico; Freud o confrontou com seus fantasmas e idiossincrasias, fazendo-o sujeito responsável por desejos, escolhas e sofrimentos; e, desde a segunda metade do século XX, muitos anônimos coletivos seguem inventando o cibermundo, uma dimensão humana virtual que não cessa de se transmutar.

Para atualizar a idéia de ciência, reafirmamos o seu caráter plural como construção histórica e produto da cultura. Isso implica destacar o sentido simbólico e institucional das ciências como narrativas, produtos discursivos, modo de produção de discursos, práticas sociais em interface com outras práticas sociais, objetos culturais em campos culturais; enfim, o conceito de cultura científica.

Finalmente, e aqui se encontra talvez alguma originalidade em nossa proposta, buscamos, no conceito de cultura artística, distinguir as artes das humanidades, reconhecendo uma multi-referencialidade própria dos processos artísticos e a importância das estéticas na vida atual.

O sistema binário de duas culturas antagônicas correspondia à estrutura ideológica das sociedades modernas e suas universidades clássicas, há muito superadas pela história. Neste século XXI, o sistema de três culturas, nem contraditórias nem complementares, que melhor traduz a cosmologia complexa das sociedades contemporâneas, permitirá a reinvenção da universidade brasileira.


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