Ética profissional: cada um por si

Jornal O Popular, 27/05/2007

Ética profissional: cada um por si

Wagno O. de Souza

Enquanto uma turma de estudante visitava uma exposição de arte, um dos alunos desgarrou-se do grupo e decidiu deitar-se em um banco de madeira situado em uma parte nobre do museu. O segurança acordou o garoto e disse: “Você não pode deitar aqui”. E o adolescente retrucou: “Por que não posso? Eu estou impedindo alguém de se sentar? Está escrito em algum lugar que não posso fazê-lo?” O velho segurança, nada tendo a dizer, saiu sem replicar. Ora, o que aconteceu de errado? Simples: não foi interiorizado na subjetividade daquele rapaz um “código” que rege as coisas que se deve ou não fazer, mesmo quando as razões da conveniência assim o permitem.

Olhando pelas lentes históricas da Ética é possível constatar que toda sociedade, em seu auge político e social, pautou a relação entre o grupo social e a singularidade de seus membros segundo códigos que davam preponderância ao coletivo em detrimento de interesses individuais. E isso era interiorizado na subjetividade das pessoas, pela pedagogia do Estado. O trabalho de valoração dos elementos de natureza coletiva era algo que levava o cidadão, do mais humilde ao mais destacado, a admitir em sua mais profunda intimidade o que o filósofo Sócrates alegou ao aceitar a sua condenação: “a submissão às razões do coletivo é melhor que as melhores razões que o individual possa apresentar em sua defesa”.

Mas olhando a sociedade brasileira pode-se dizer que há a ausência de um código legítimo sobre o que se deve ou não fazer. E isso não tem algo a ver com a versão positiva do Direito e das leis. O que está em falta é uma certa legitimidade, e não a tão conhecida legalidade. Primeiro, porque a consciência coletiva no Brasil sobre o certo e o errado, do início do século 19 até a abertura política, na década de 80 do século passado, esteve fundamentada apenas na forma da consciência religiosa. Nenhuma outra forma de código coletivo, de amplitude nacional e legítima, conseguiu, no cenário brasileiro, uma unanimidade recorde, como a religião.

Com a abertura política, houve uma tentativa de substituir as formas da moral religiosa – o único código coletivo até então – pela do racionalismo europeu. Mas tal empreendimento foi realizado à base de uma indução anacrônica: a construção deste novo código chegou na forma dos direitos individuais, sem que os direitos coletivos, na forma da cidadania, houvessem se instalado. Antes de falar em cidadania e democracia, os marxistas práticos da Nação já criticavam um modelo de Estado europeu que ainda nem existia no Brasil. Tal crítica, além de demonizar o Estado, bem como todo e qualquer imperativo coletivo existente no território brasileiro, fez surgir o inimigo da política, dos políticos (primeiro no governo militar, depois dos que iniciaram a abertura) e da religião (era chique ser intelectual e ateu). Tudo que tinha no Brasil com potencial de fazer nascer um novo código coletivo foi relativizado, criticado e banalizado: até a política.

E aí a ausência do código fez surgir um tipo de lógica que tem muito mais a ver com “o que se pode fazer”, do que as razões “do que não se deve fazer”. A máxima “é proibido proibir” virou fundamentalismo intelectual do relativismo brasileiro pós-década de 80. Na verdade, um dos vírus da atual corrupção começou a tomar força quando a elite antropológica e cultural instalou na incipiente cidadania a idéia de que “o jeitinho brasileiro” era uma virtude, e não um vício. E nisso o tal código racional, ainda bebezinho, se transformou em espertalhão safado.

O que restou: um país onde a cidadania ficou reduzida à atividade profissional do “cada um por si, e Deus para quem acredita”. Agora a religião oficial da razão brasileira tem um deus chamado mercado. E o único código é um dogma liberal: “deixe cada um buscar individualmente a felicidade, que o coletivo naturalmente se organiza”. E eis então o caos: qualquer um se sente no direito de utilizar a coisa pública como bem entende, todo mundo deita onde quer. Mas a diferença do garoto do início do texto, mesmo que o proibido esteja escrito, é que o jeitinho brasileiro se safa pelas brechas da lei, ou pela escuridão da privacidade. E a ausência de um código sobre o que pode ou não pode ser feito transformou a ilegalidade na corrupção epidêmica, do tipo “se Deus não existe, tudo é permitido” (Dostoiévski).

Wagno O. de Souza é mestre em Filosofia Política
e professor universitário. (professor@wagno.com)