Questão de cidadania
Questão de cidadania
Cuidados ao se referir às pessoas, para diversos segmentos, são mais que formas educadas de se expressar. Significam dignidade
Rogério Borges
Muitos podem considerar que a exigência de se referir às pessoas com denominações politicamente corretas é apenas patrulha, coisa de gente entojada, que gosta de pegar no pé dos outros. Em parte isto até pode ser verdadeiro, mas tais limites significam muito para parcelas da população que historicamente foram e são discriminadas na sociedade. “O ideal é que tenhamos liberdade de expressão sem deixar de punir os excessos”, prega Zulu Araújo, presidente da Fundação Palmares, entidade do Ministério da Cultura que, além de cuidar da preservação e valorização da herança cultural africana no Brasil, também luta na defesa dos direitos dos negros no País.
“Não sou um neurótico que acha que tudo é ofensivo. Isso depende muito da circunstância e até do local em que a palavra é dita. O Brasil é muito grande e não pode ser tomado como algo uniforme”, pondera. “Você dizer neguinho, pretinha pode ser um carinho como também pode ser uma ofensa. Depende da intenção de quem diz.”
Zulu ilustra seu raciocínio com os sentidos que envolvem a palavra negro. “Antes essa terminologia era considerada preconceituosa. Nós fizemos um trabalho para recuperar o caráter positivo do termo. Este é um trabalho político das organizações que lutam contra o racismo no Brasil.” O presidente da Fundação Palmares acredita que a adoção do politicamente correto deveria vir acompanhada de um trabalho nas escolas, em que as crianças aprendessem que mais importante do que usar palavras delicadas é a lição de que todos merecem ser tratados com o mesmo respeito.
“Coisas ruins não podem ser relacionadas a etnias. Neste assunto, não podemos ficar na superficialidade. Temos de ir mais fundo.” Zulu não esconde, no entanto, o incômodo com palavras como “denegrir”, que carrega um viés racista, ao mesmo tempo que se revela reticente com o uso xiita do politicamente correto. “Em nossa maneira de falar conta muito a conotação do que é dito. Não podemos estabelecer uma regra geral.”
Deficientes
Lusia Alves da Silva, presidente da Associação dos Deficientes Físicos de Goiás (Adfego), também demonstra não concordar com o uso intransigente do politicamente correto. Ela aponta um perigo nesta prática. “Em determinado momento, o deficiente físico passou a ser chamado de portador de necessidades especiais. Isto trouxe um certo paternalismo, o que também é ruim. O deficiente precisa ter autonomia. Com tal denominação, essa pessoa passou a ser especial até dentro de casa, o que também é uma forma de discriminação.”
Ela refuta termos grosseiros, como aleijado, mas pede bom senso nestes casos. “Se uma pessoa idosa, que sempre falou assim, diz esta palavra sem a intenção de ofender, não há razão para levar este episódio muito além. O que precisamos é apostar mais na conscientização. Seria ótimo que os termos corretos fossem mais divulgados”, pede. E qual é o termo politicamente correto para alguém que tem alguma deficiência física? “É deficiente físico mesmo”, informa a presidente.
Obesos
Já quem não quer cometer gafes com obesos deve chamá-los por... “Pelo nome que a pessoa tem. É o mais adequado”, responde, rápida no gatilho, Neuza Maria Cezário da Costa, presidente da Associação dos Obesos e Ex-Obesos de Goiás (Assoeg). “Esta história de gordinha, fofinha, engraçadinha, tudo isso é ofensivo”, previne ela. “É um tipo de referência que rotula a pessoa. A obsesidade é uma doença e assim deve ser encarada. Não deve ser sinônimo para ninguém.”
Assim como a maioria das pessoas ouvidas, ela é partidária da educação como a melhor política para evitar constrangimentos. “Temos de bater nesta tecla. As pessoas precisam aprender a tratar alguém que tem este distúrbio metabólico com o respeito que merece.” Neuza adverte que um obeso que passa a vida inteira ouvindo piadinhas, sendo chamado de gordo e outras palavras indelicadas fica com seqüelas psicológicas. “Isso afeta a auto-estima e prejudica até o tratamento médico da pessoa.”
A psicóloga Beth Fernandes, presidente do Fórum de Transexuais de Goiás, já se chateou com pessoas que a trataram inadequadamente. “Sou uma mulher transexual. Quem me trata como um homem tem um problema de percepção.” Beth fez a cirurgia de mudança de sexo em 2004. Ela prefere não informar o nome que tinha antes do procedimento. “Não quero ser tratada como transexual. Quero ser tratada como ‘a’ Beth”, avisa, enfatizando o artigo “a”.
Beth começou a se vestir de mulher aos 25 anos e antes da mudança de gênero não gostava de ser chamada de travesti. “Isso era pejorativo. Não que o travesti seja melhor ou pior do que o transexual, mas as pessoas diziam a palavra para ofender”, esclarece. Piadinhas com palavras como bichinha, veado e outras denominações que, mesmo muito populares, carregam um tom de escárnio, também não são toleradas por Beth.
“Temos de ensinar a cidadania às crianças. Não pode ser natural ofender o outro. Nessa violência verbal há uma violência psicológica”, acredita. Talvez a melhor forma de lidar com tudo isso seja a da presidente da Adfego: “É preciso encarar essas coisas com mais leveza e humor”, sugere Lusia Alves.
Incorreções e desaforos
No sentido exatamente oposto ao politicamente correto, o médico Solimar Moisés, de Goiânia, lançou na quinta-feira um livro em que brinca com o patrulhamento em relação ao assunto. “Escrevi esta obra para demarcar os excessos do politicamente correto”, explica o autor de Dicionário Politicamente Incorreto – Divertidamente Desaforado, publicado pela R&F Editora. Ele assinala que seu objetivo não é disseminar o ódio ou reforçar preconceitos, mas sim brincar com normas que, de alguma forma, podem acabar cerceando a liberdade de as pessoas se expressarem.
Ao todo, Solimar reuniu 4,2 mil verbetes com definições originais, criadas por ele mesmo. “Todos os significados saíram de minha cabeça. Claro que minhas leituras influenciaram meu modo de ver o mundo, como Voltaire, Oscar Wilde, Mark Twain e, principalmente, Millôr Fernandes. Essas pessoas mostram um modo de ver o mundo mais crítico”, prossegue o escritor.
Nos tempos de faculdade, Solimar era um dos redatores do Show do Esqueleto, tradicional evento com esquetes humorísticos promovido pelos alunos de Medicina da UFG. “O humor está sempre no fio da navalha. Por um lado, é muito fácil ficar sem graça. Por outro, também é fácil ofender. É como cozinhar um prato fino”, compara. Nos últimos tempos, um outro ingrediente nesta receita é a preocupação com as piadas que possam denotar preconceitos ou disseminar estereótipos.
“O politicamente correto usado de maneira exacerbada é um perigo para o humor. Há personagens que são muito recorrentes em piadas, como o judeu e o português”, diz o escritor. Ele garante ser contra brincadeiras que tragam mensagens racistas ou que façam graça com deficiências físicas e mentais. “Aí já é crueldade. Nestes casos o politicamente correto é necessário”, admite. Em compensação, alega que muitas dessas novas expressões vêm em socorro de quem não as pediu. “E é bom lembrar que o humor sempre foi uma defesa contra todo tipo de arbitrariedade.”