Informação, formação e deformação

Jornal O Popular, 15/07/2007

Informação, formação e deformação

Carmen Bruder

Talvez valha a pena, nestes tempos de tanta barbárie, pararmos para refletir um pouco sobre o que poderia estar acontecendo. Entra semana e sai semana e as coisas só vão piorando. São alunos que decepam dedo de professoras, que explodem o banheiro da escola, põem fogo no carro da mestra; jovens que espancam mulheres, prostitutas ou não, que ateiam fogo em pessoas nas ruas, índio ou não, que estupram e matam a própria irmã, que sacrificam uma criança de apenas cinco anos, destroçando-a pelas ruas, enfim, que fazem coisas para as quais apenas a falta de oportunidade tem funcionado como limite.

Parece que os preceitos de humanismo, respeito ao próximo, solidariedade, fraternidade, humildade estão sendo jogados na lata de lixo. Nestes momentos, não dá para fazer de conta que não temos nada a ver com isso, porque acabamos estando em um dos lados: dos que são roubados, espancados, queimados vivos, desrespeitados, feitos de trouxas, ou então, do lado de quem faz isso tudo, chamados a responder como pais, porque é isso o mais grave, a delinqüência é cada vez mais infanto-juvenil.

Esses pais, dos pequenos vândalos, devem uma explicação à sociedade e, antes de tudo, a si mesmos: o que estaremos fazendo com nossos filhos? Será que jovens podem se comportar como verdadeiros animais selvagens? Será que os homens estão se endurecendo? Será falha da educação ou da forma de se educar?

Já não se trata mais de episódios isolados, mas, de uma tendência, ou seja, acontecimentos que servem de combustível para alimentar seu próprio fogo. Como tal, certamente não é simples de se explicar, pois que junta uma série de fatores; muito menos será simples de reverter, porque nos coloca numa posição de incredulidade e impotência. É a sensação que sofremos quando, por exemplo, somos atropelados. Ninguém deseja ou trabalha pra que isso aconteça, nem mesmo acredita que possa acontecer consigo, mas, acontece mesmo assim. E daí, dá pra fazer alguma coisa em prol de não sermos atropelados? Numa primeira análise parece que dá para prevenir; garantir, é claro, jamais.

Penso que uma abordagem da prevenção pela via da forma pode ajudar. Forma, formato, o jeito de ser de alguma coisa, determinado pela fôrma a que foi submetida. Da mesma origem, vem a palavra informa, e dela informação. Pode ser um começo.

Paradoxalmente, estamos na época da informação, e de pais que se esmeram por dar a melhor delas para seus filhos. Crianças muitas das vezes estão sendo transformadas em carregadores de mochila: da escola para o inglês, daí pra natação, dela pro kumon, pro judô e, lá se foi mais um dia. Talvez seja por isso que dá até gosto observar como eles se desfazem das mochilas ao chegar em casa: arremessando-as ao chão, livrando-se do fardo que podem representar sem que ninguém se dê conta disso.

Informação é importante, mas só se pode in-formar depois de se haver formado. Com os tempos modernos, com a facilidade e necessidade de adquirir bens materiais para garantir status, com o trabalho feminino fora do lar, todas tendências que não há como contestar, a família tem sofrido alguns golpes profundos. E, até prova contrária, não há nada que possa exercer essa função de formar com a competência da família. Poderíamos talvez dizer que os que não as tem estão fadados ao fracasso? Categoricamente, não; mas, de que fica muitíssimo mais difícil, alguém duvida?

É da família o papel central na educação de uma criança. Vale lembrar que educar é impor restrições. É ensinar o que pode e o que não pode, é dizer não, em uma infinidade de circunstâncias. Começamos por delimitar o território de segurança da própria criança: “não enfie o dedo na tomada”; em seguida por ensinar o que é dela: “devolva, isso não é seu“, para finalmente possibilitar a ela a compreensão do que é de direito do outro: “isso é de seu irmão”. Estamos falando de coisas? Sim, também das coisas, mas, através delas, de sentimentos, afetos, respeito, carinho, o famoso “não faça aos outros aquilo que não quer que façam com você”.

E a escola pode ajudar a formar? Certamente. Mas o que vemos é cada vez mais o engano de pais que acham que é da escola, cujo papel principal é informar, a competência de substituir a família na função de formar. Por falta de tempo, incompetência dos pais, desmoronamento da instituição familiar, tudo isso junto e mais alguma coisa? Com um pouco de atenção, podemos perceber isso, por exemplo, quando o pai do menino que espancou a pobre mulher no ponto de ônibus, sai em defesa do filho, dizendo que ele não pode ficar preso porque tem que ir à escola. Neste momento ele privilegia a escola na função que deveria ser a dele. Afinal, podemos perguntar: e daí, que garantia a escola está dando ao filho dele de respeitar o próximo? Nenhuma, porque, insisto, respeito se aprende em casa, e precisa ser exercitado na escola. Mas, estou cansada de ver pais que, basta uma repreensão da professora, para ativarem um arsenal de impropérios contra a escola que estaria desrespeitando o seu filho. Pois é, de quem é a falta de respeito?

Essa lente invertida que a sociedade atual está usando, é, a meu ver, um dos fatores mais importantes para a criação de vândalos. Não podemos esquecer de que, quem tem a obrigação de formar, acaba fazendo isso de uma forma ou de outra: quem não forma, deforma. Quero crer, também, que ninguém quer ver seu filho deformado, a menos que ele próprio seja um doente mental, e isso é uma minoria.

Então, os tempos são mesmo para reflexões, para pensar como se educa alguém. Pode parecer muito complicado, mas é muito simples: educação, tanto a boa quanto a má, se dá com exemplos. Tudo o que fizer, pare e pense: é isso que espero do meu filho? Se a resposta for não, mude você primeiro, para só depois se tornar digno de ensinar isso a ele.

Carmen Bruder é psicanalista e palestrante, especialista em Psicoterapia para Adolescentes e Adultos pelo Núcleo de Estudos em Psicologia e Psiquiatria (SP). cbruderfonseca@hotmail.com