As pedras no caminho dos Hospitais Universitários
UnB Notícias, 17/07/2007
As pedras no caminho dos Hospitais Universitários
André Augusto Castro
As 45 unidades de saúde do sistema do MEC têm dívida de mais de R$ 400 milhões e há poucos arranjos para tirá-las do buraco
Quando o parto de Gustavo começou, na noite de sábado, 23 de junho de 2007, sua mãe, Vanessa da Costa da Silva (foto ao lado), só torcia para que tudo corresse bem. Até ficou preocupada com o intenso choro do menino ao sair do calor do útero. Mas eram apenas receios de mãe de primeira viagem. O bebê nasceu saudável e a paciente não teve nenhuma complicação. O que Vanessa nem sequer imaginava é que, por trás do bom atendimento recebido por ela, uma crise de grandes proporções e difícil solução ameaça os 45 hospitais universitários (HUs) brasileiros. Entre eles, o Hospital Universitário de Brasília (HUB), ao qual a jovem de 19 anos comparece desde setembro de 2006, início do pré-natal. Ela também não sabe que o Sistema Único de Saúde (SUS) pagará à instituição ligada à Universidade de Brasília (UnB) apenas R$ 334,00 pelo parto, normal, incluindo aí custos com medicamentos e internação, entre outros. Num hospital particular, a moradora de Samambaia, que ainda cursa o ensino médio, teria de desembolsar R$ 3,9 mil.
Os HUs vivem um ciclo pernicioso. Como não têm autonomia para abrir concursos públicos e contratar pessoal permanente, precisam terceirizar vagas para manter o atendimento que garante o aporte de verbas do Sistema Único de Saúde (SUS). Os recursos pagam procedimentos como o parto de Vanessa e também deveriam ser usados para pagar fornecedores. Mas o fato de terem folha terceirizada tão grande obriga os diretores a usá-los na relação trabalhista, incorrendo em dívida estimada em mais de R$ 400 milhões com fornecedores públicos e privados.
Mesmo nesse quadro caótico, os HUs conseguem ser referência de bom atendimento e são importantes para o SUS. Realizaram mais de 4,8 milhões de consultas apenas no primeiro semestre de 2006, dado já consolidado pelo Ministério da Educação (MEC), ao qual são vinculados. Dessas consultas, mais de 3,9 milhões foram ambulatoriais e outras 590,3 mil de emergência. Além disso, foram responsáveis, no mesmo período, por 571.538 procedimentos de alta complexidade. Dados de 2003 do Ministério da Saúde (MS) mostram que os HUs respondem por 10,3% do total de leitos do SUS, 11,8% das internações hospitalares, 11,6% do total da produção ambulatorial e 37,6% dos procedimentos complexos. O UnB Notícias fez um amplo levantamento sobre a situação atual dos hospitais universitários e aponta os principais problemas para o funcionamento dessas unidades. Confira:
1 - Recursos Humanos
No mesmo período em que Vanessa comparecia ao HUB para fazer o pré-natal e era atendida normalmente, a crise dos HUs se desenrolava em outras esferas. O MEC e o MS continuavam em um impasse quanto ao modelo de financiamento, gestão e contratação de recursos humanos. Ambos reconhecem o problema, mas, cada qual em seu papel, empurram a solução um para o outro. No MEC, o diretor de Hospitais Universitários da Secretaria de Educação Superior (Sesu), José Wellington Alves dos Santos, admite que é responsabilidade da pasta suprir o quadro funcional, mas que não há fôlego suficiente para contratar no mesmo ritmo em que a demanda pelos serviços de saúde cresce. “Isso deveria ser negociado com a saúde”, afirma.
Já o diretor do Departamento de Atenção Especializada (DAE) da Secretaria de Atenção à Saúde (SAS) do MS, Alberto Beltrame, discorda: “Essa é uma questão que deve ser equacionada pelo MEC”. O ministro de Planejamento, Orçamento e Gestão, Paulo Bernardo Silva, revela que os hospitais universitários têm 22 mil servidores terceirizados, contratados por fundações de apoio ou outras modalidades. “Em alguns casos, os arranjos institucionais para viabilizar essas contratações são verdadeiras gambiarras administrativas”, critica. Os servidores concursados somam 39.673. O ministro admite que o governo já recebeu determinações do Tribunal de Contas da União (TCU) e do Ministério Público Federal (MPF) para regularizar a situação dos HUs.
Uma das unidades que incorre na prática de contratar via fundações de apoio é o Hospital Universitário Polydoro Ernani de São Thiago, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), também um dos poucos do sistema que não tem dívidas com fornecedores. A unidade, no entanto, deve à fundação de apoio da universidade, que efetua os contratos para suprir as vagas abertas por mortes ou aposentadorias de servidores do quadro.
“Contratamos pela fundação para não suspender os serviços e manter o que funciona. Apenas nos últimos dois anos, tivemos 62 aposentadorias”, lamenta o diretor do hospital, Carlos Alberto Justo da Silva. A impossibilidade de fazer concursos à medida que as vagas são abertas equivaleria à perda delas, não fosse a contratação terceirizada.
O HU da UFSC atende uma média de 350 mil pessoas por ano (entre exames, internações e ambulatórios), e Silva considera o modelo de gestão atual inadequado para os desafios da assistência. “Para que a formação que proporcionamos seja de qualidade, precisamos de autonomia financeira e de reposição do quadro”, reivindica. Outra instituição que adota essa rotina para a recomposição do quadro é o Hospital Universitário Onofre Lopes, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). A unidade tem 40% de sua folha de pagamentos destinados ao pessoal terceirizado.
No HUB, em Brasília, a situação é pior: 60% dos recursos advindos dos pagamentos do SUS são usados para custear os salários do quadro terceirizado. Todos esses hospitais caem em dívidas com seus fornecedores porque são obrigados a pagar pessoal com a verba que deveria ser destinada a cobrir os custos dos procedimentos realizados. Por conta dessa situação, a dívida cresce dentro do sistema. “É preciso mudar esse quadro porque há casos de pessoas que trabalham há 10 ou 12 anos em hospitais universitários e são consideradas irregulares pelo TCU”, comenta o ministro Paulo Bernardo. Ainda assim, não há previsão de abertura de concursos para recompor o quadro dos HUs.
Essa crise toda, no entanto, passou despercebida por Vanessa e o recém-nascido Gustavo, que já voltaram para casa, em Samambaia (a pouco mais de 25 km do centro de Brasília). A mãe não tem qualquer queixa acerca da qualidade do serviço recebido. “Vim para o HUB por indicação de uma prima que havia feito parto aqui. O atendimento é bom e os médicos são atenciosos. Eu indicarei o HUB”, afirma. Ela deixou o hospital e a crise para trás, mas o diretor da unidade ainda busca uma saída para tentar equilibrar o pagamento dos 1.043 servidores terceirizados e para diminuir a dívida com fornecedores, que já ultrapassa os R$ 11 milhões (veja abaixo).
45 Hospitais Universitários Federais de 30 universidades públicas
R$ 400 milhões é a dívida estimada com fornecedores
22 mil servidores terceirizados
39.673 servidores concursados (pagos pelo MEC)
R$ 452.455.080,75 repassados pelo SUS em 2006
R$ 100 milhões repassados anualmente pelo MEC e pelo MS
4,8 milhões de consultas apenas no primeiro semestre de 2006
571.538 procedimentos de alta complexidade
10,3% do total de leitos do SUS
11,8% das internações hospitalares pelo SUS
11,6% do total da produção ambulatorial no sistema SUS
37,6% dos procedimentos de alta complexidade no âmbito do SUS
2 - Modelo de gestão
Uma possível solução para os problemas dos HUs pode vir do Ministério de Planejamento, Orçamento e Gestão (MP), sob a forma de um novo modelo de administração: as fundações públicas de caráter privado, projeto em discussão e que deve ser enviado ao Congresso Nacional ainda em 2007. A idéia é conferir autonomia de gestão e financeira aos hospitais universitários, mantendo seu vínculo – mas não a subordinação – com as 30 universidades federais às quais estão atualmente ligados. A questão é que, para implantar esse modelo, o projeto precisa ser apreciado e votado no Congresso Nacional, além de ser debatido em âmbito acadêmico. Ainda assim, existem duas dificuldades: a realização de concursos para substituir o quadro terceirizado e o dinheiro para pagar as dívidas acumuladas.
Advogada especialista em Direito Sanitário e ex-procuradora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Lenir Santos explica que o modelo de fundação pública de caráter privado confere maior agilidade à administração. Ela, no entanto, alerta que a mudança não é uma panacéia e não resolverá os problemas caso não conte com a contratação de pessoal comprometido e com a oferta de salários compatíveis com o mercado. “O modelo atual, no qual o hospital é um órgão da universidade, tem os dias contados. Cada vez mais as instituições de ensino buscarão ficar fora do financiamento do que se entende por assistência à saúde”, aposta Lenir.
O único HU da rede federal que funciona em molde semelhante ao que se defende para as fundações é o Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), tido como exemplo entre seus pares (veja quadro na página 12). O HCPA é uma empresa pública de direito privado, assim como a Caixa Econômica Federal. A diferença dele para os demais HUs é que o HCPA tem patrimônio próprio e capital exclusivo do governo. O presidente da unidade, cargo equivalente aos diretores das demais, Sérgio Pinto Machado, considera que essa figura jurídica reúne características positivas tanto do segmento público quanto da iniciativa privada.
Como qualquer órgão público, os hospitais recebem recursos governamentais em rubricas específicas e estão submetidos a instâncias externas de fiscalização e controle. O que encanta os demais gestores de HUs no novo modelo é a parte privada, que confere total autonomia administrativa e financeira, permitindo profissionalizar a gestão e torná-la mais flexível. Na prática, os diretores terão a liberdade de recompor os quadros funcionais à medida que surgirem vagas e poderão usar os recursos sem depender de trâmites burocráticos. Outro ponto vantajoso é ter funcionários em regime de CLT, que podem ser premiados por produtividade ou demitidos em caso de ineficiência.
A admissão, no entanto, continua sendo feita unicamente por concurso público. Essa modalidade de gestão permite ainda contratar pessoal com exigências de qualificação e oferecer salários compatíveis com os níveis do setor de saúde local. Isso não acontece, por exemplo, no HUB, onde um médico formado recebe R$ 1,3 mil para jornada de 20 horas semanais. A maior concorrente é a Secretaria de Saúde local, que paga aproximadamente R$ 2,6 mil.
Exemplo dessa situação é o médico urologista Bruno Mestrinho, que atende no HUB. Ele é contratado, terceirizado, por 20 horas semanais. Confessa que, no final do mês, nem confere o contra-cheque por saber que o salário não corresponde à demanda de trabalho. Ex-aluno da UnB, admite continuar no emprego por amor à camisa. “O estímulo para ficar aqui é a oportunidade de crescimento profissional proporcionada pelo ambiente acadêmico do hospital, pelo trabalho em equipe e pela troca de conhecimentos. Mas, para me sustentar, preciso de outros empregos”, reconhece ele.
Apesar da crise, atendimento é bom
Neusa Roberta da Silva, 48 anos, chegou ao Hospital Universitário de Brasília (HUB) para fazer um transplante de rim, depois de ter procurado o Hospital de Base de Brasília, o outro da rede do Sistema Único de Saúde (SUS) no Distrito Federal que efetua esse procedimento. Conta ter preferido ficar no HUB pela atenção recebida e pela referência de qualidade no atendimento. Depois de dois anos com problemas renais, fazendo sessões de hemodiálise por quatro horas três vezes na semana (período que considera o mais difícil de sua vida), a viúva recebeu um rim de seu irmão e agora planeja nova vida.
Nos oito meses em que freqüentou o HUB, chegou a imaginar os problemas pelos quais a unidade passava, mas não viveu nenhum deles na pele. “Eu vi equipamentos deteriorados pelo uso em vários locais, mas nada disso me atingiu desde o começo do atendimento. Dentro da rede pública, o HUB é a melhor opção”, elogia. A cirurgia foi realizada no último dia 20 de junho e não teve complicações. Três dias depois, Neusa estava contente, comemorando a possibilidade de beber água (os doentes do rim têm de controlar a ingestão de qualquer líquido), e planejando o que fará depois de recuperada. Apaixonada por esportes, especialmente os de aventura, sonha em saltar de pára-quedas: “Só preciso da liberação médica”.
Para José Ricardo Lagreca Sales, diretor do Hospital Universitário Onofre Lopes, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), a terceirização, mesmo não autorizada pelo TCU, é a única solução viável para manter o atendimento à população. “Nosso hospital não tinha dívidas. Entramos nessa situação em 2006, quando passamos a usar parte de nossa receita para pagar pessoal. O HU, no modelo jurídico atual, precisa de garantias para o pagamento da folha”, argumenta o diretor. Ele aposta que o modelo de fundação estatal permitirá uma gestão mais ágil, especialmente de recursos humanos. “Conseguimos sobreviver em meio a esse maremoto”, afirma Sales.
Mas o modelo de fundação estatal de caráter privado não agrada a todos. Para a coordenadora-geral da Federação de Sindicatos de Trabalhadores das Universidades Brasileiras (Fasubra), Léia de Souza Oliveira, a proposta do MP é ruim porque, na visão do movimento sindical, dá autonomia plena aos dirigentes dos hospitais. “Na prática, isso aponta para a desvinculação em relação às universidades”, critica. Ela lembra que a demanda do SUS faz com que os HUs se concentrem mais na assistência do que em suas funções principais: ensino e pesquisa. “A extensão nem existe porque é confundida com assistência, que é a verdadeira prioridade. A proposta das fundações não resolve os problemas”, afirma.
No entanto, essa posição é desarmada pelo presidente do HCPA, Sérgio Pinto Machado. Embora tenha autonomia orçamentária e de gestão em relação à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), o hospital está estreitamente ligado a ela do ponto de vista acadêmico. “Existe forte atuação de docentes nas atividades institucionais, não só as de ensino e pesquisa, mas também as assistenciais e de gestão”, afirma Machado. Sem que possuam vínculo empregatício com a unidade de saúde, professores da UFRGS lideram as equipes assistenciais, chefiam os serviços médicos e de enfermagem, ocupam a maioria dos cargos administrativos e têm representação marcante no Conselho Diretor.
3 - Financiamento
É bem verdade que as pastas da Saúde e da Educação tentam soluções para o problema. Mas a maioria das medidas ainda é pontual, para apagar incêndios, e não estrutural, para resolver a crise de vez. Por meio de portarias interministeriais, MEC e MS encontraram uma forma de aportar mais recursos aos hospitais universitários. Cada um concede R$ 50 milhões e há planos para expandir esse montante para R$ 65 milhões, totalizando R$ 130 milhões, ainda em 2007. Esse valor, no entanto, é diluído por todas as 45 unidades que compõem a rede federal de HUs, o que resulta em uma fatia incapaz de viabilizar o pagamento de dívidas e mesmo financiar a aquisição de equipamentos.
Uma alternativa surgiu em meados de 2004, quando uma comissão interministerial propôs a contratualização – neologismo que designa o contrato firmado entre os hospitais, os gestores locais de saúde e o Ministério da Saúde para o estabelecimento de metas de atendimento pelo SUS. Com a nova forma de contrato, cada um dos HUs federais deixou de receber por procedimentos prestados e passou a receber valores fixos mensais, maiores que os montantes anteriores. Mesmo assim, o dinheiro é repassado com cerca de dois meses de atraso em relação à data do atendimento. Essa nova forma de acordo deu fôlego de aproximadamente três anos às instituições.
Elogiada pelos HUs, a contratualização ajudou a quitar alguns débitos e a frear o crescimento da dívida. Porém, essa nova tabela também já está defasada e os problemas financeiros voltam a assombrar diretores de hospitais e reitores. A mesma comissão que firmou o pacto deveria ser responsável por sua atualização. Os trabalhos até começaram em 2006, mas a última reunião foi feita no segundo semestre do ano passado, sem novos acordos.
Preocupado com a situação dos hospitais, o presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), Arquimedes Diógenes Ciloni, já pediu ao MEC a retomada urgente dos encontros. “Estávamos exatamente na fase de revisão da contratualização, que foi um processo muito positivo porque deu fôlego ao funcionamento. Esperamos decisão dos ministros para retomar os trabalhos”, afirma Ciloni, reitor da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e também presidente da comissão de HUs da Andifes.
Trabalho por amor ao hospital
O médico urologista Bruno Mestrinho, graduado em Medicina pela Universidade de Brasília (UnB), confessa trabalhar no HUB por amor à instituição que o formou. Seu salário, depois de duas residências (em Cirurgia Geral e em Urologia), o que soma mais de 10 anos de estudos, não ultrapassa os R$ 1,3 mil, o que o obriga a ter mais de um emprego. “Estou há cinco anos no HUB, um deles como voluntário. Estou aqui por amor, porque o salário não é atrativo”, reforça.
Mestrinho é um entre os 1.043 servidores terceirizados do HUB e não hesita em afirmar: “Se houvesse um concurso para uma vaga com salário digno, com certeza abriria mão de minhas outras ocupações e trabalharia apenas aqui”. Além de atender uma média de 30 pacientes por dia, Mestrinho atua nas três áreas de mais alta complexidade dentro de sua especialidade: oncologia urológica, transplante renal e litotripsia, técnica que utiliza um equipamento para quebrar cálculo renal por meio de ondas emitidas por uma bolha de água. A máquina é direcionada ao aparelho urinário do paciente, sem corte ou anestesia.
O médico revela que um dos maiores estímulos para continuar no HUB – onde cumpre 20 horas por semana – são as reuniões científicas que acontecem às quartas-feiras pela manhã. Desse encontro, participam oito urologistas, residentes e internos para discutir casos, avaliar trabalhos e procedimentos. “Essa formação permanente é muito importante para a carreira médica e se reverte em benefício direto aos pacientes que atendemos”, conta. O bom resultado também se expressa em pesquisas: os médicos da urologia do HUB irão a um congresso científico em outubro, no qual apresentarão 26 trabalhos.
4 - Tabela do SUS
Mesmo sem terem se cruzado pelos corredores do HUB enquanto estavam internadas, Vanessa e a dona-de-casa Neusa Roberta da Silva, 48 anos, que se submeteu a um transplante de rim, têm algo em comum: a crise dos HUs não as atingiu. Neusa passou oito meses entre consultas e exames para receber o órgão doado por seu irmão. Soube dos problemas e conhece as dificuldades do hospital, embora afirme que não tenha sido afetada: “O atendimento foi muito bom desde o ambulatório até agora, no pós-operatório”, frisa. O que ela não sabe, no entanto, é que os pouco mais de R$ 14,8 mil repassados pelo SUS para pagar sua cirurgia incluem custos com medicamentos, refeições, material de consumo, internação e UTI.
Em um hospital particular, o mesmo procedimento custaria entre R$ 120 mil e R$ 150 mil. Esse é um dos problemas que os HUs enfrentam: a tabela do SUS é defasada em relação ao custo real dos procedimentos realizados. Paga por uma consulta, por exemplo, R$ 7,55 – menos do que custa um corte de cabelo. Um dia inteiro de internação, para o SUS, vale R$ 40,38. “As soluções dadas até hoje não apontam cenários concretos ou planejamento para resolver os problemas existentes”, lamenta o diretor do Hospital Universitário Onofre Lopes, da UFRN, José Ricardo Lagreca Sales.
É preciso reconhecer, no entanto, que o problema da tabela atinge a todos os hospitais que atendem pelo SUS, universitários ou não. Mas para os HUs, o déficit sobra para as universidades federais, que têm de arcar com a despesa. Entre 2005 e 2007, por exemplo, a UnB repassou R$ 6 milhões da verba de custeio para pagar dívidas do HUB, recurso que poderia ser usado para outras finalidades acadêmicas. Para o decano de Administração da UnB, Erico Weidle, o quadro ideal seria a auto-suficiência das unidades de saúde ligadas às universidades. “Uma dívida de R$ 11 milhões para uma universidade que recebe R$ 40 milhões de custeio é muito dinheiro. Não dá para quitar. Estamos em um quadro sem solução. Não adianta administrar muito bem porque o quadro é crônico”, lamenta.
5 - Infra-estrutura
Vanessa e Neusa escaparam por pouco dos problemas de infra-estrutura do HUB: os elevadores do hospital ficaram quebrados entre 17 e 30 de abril de 2007. Cirurgias deixaram de ser feitas porque não era possível levar os pacientes do terceiro andar, onde ficam as salas de operação, para os demais.
Esse problema atingiria Neusa diretamente. Depois do transplante a que se submeteu, foi transferida para a ala de nefrologia do HUB, localizada no quarto andar do prédio. A movimentação aconteceu em um dos dois elevadores que estão funcionando. As deficiências na infra-estrutura não prejudicam apenas o HUB. Por amargar dívida de mais de R$ 14 milhões com fornecedores, o Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (HC/UFU) – o único público para atender região com mais de 30 municípios e cerca de 3,5 milhões de habitantes – vê seus equipamentos se deteriorarem lentamente, enquanto aguarda programa para recuperação.
A média de idade dos aparelhos radiológicos, por exemplo, é de 22 anos. “Isso dá uma angústia porque não há uma linha de investimentos para os HUs. A situação é dramática. Já estamos na inadimplência formal com fornecedores e podemos ir para uma inadimplência social. É hora de mudar ou mudar”, avalia o diretor do HC/UFU, Alair Benedito de Almeida. A unidade de hemodinâmica do hospital está quebrada há dois anos, inviabilizando exames necessários para procedimentos como cateterismo e angioplastia. “O modelo atual não premia a qualidade e não serve bem a ninguém: desde os profissionais envolvidos, passando pelos pacientes e chegando aos gestores públicos”, analisa Almeida.
Uma unidade que é exemplo dentro do sistema SUS
O Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), ligado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é tido pelos demais hospitais universitários federais como o ponto onde se quer chegar. É uma empresa pública de direito privado, criada por lei específica de 1970 e dotada de patrimônio próprio e capital exclusivo da União. Seus 4.039 funcionários são celetistas, contratados por meio de concurso público, e recebem salários compatíveis com o mercado.
Para ter idéia de sua importância, basta analisar os indicadores de desempenho. Em 2006, por exemplo, foram realizadas 544 mil consultas; 33 mil cirurgias; 29 mil internações; 2,2 milhões de exames; quatro mil partos e 355 transplantes. Nesse mesmo período, o HCPA foi área de ensino para 1,5 mil estudantes de nove cursos de graduação da UFRGS, sede de atividades de 10 programas de mestrado e 10 de doutorado e área de estágio para cerca de 1,8 mil alunos de diversas áreas, além de manter programa de residência médica em 40 especialidades, com 316 médicos residentes. A atividade científica também é forte: 1.115 pesquisadores atuaram na instituição, mais de 600 novos projetos foram apresentados e cerca de cinco mil pessoas participaram da Semana Científica, principal encontro anual de divulgação da produção dos pesquisadores.
Para o presidente do HCPA, Sérgio Pinto Machado, a estrutura peculiar da unidade tem dado respostas positivas a alguns dos principais problemas dos HUs. “É correto pensar que um modelo mais flexível e dinâmico possa contribuir para a qualificação dos hospitais universitários, preservando sua identidade de ente universitário público. O modelo fundacional em estudo é uma proposta séria que merece, no mínimo, ser testada”, defende.
FRAGILIDADES DO HUB
A situação do Hospital Universitário de Brasília (HUB), vinculado à UnB, não é diferente daquela vivenciada pelas demais unidades ligadas às instituições federais de ensino superior. O hospital tem 2.253 servidores, dos quais 1.043, pouco menos de 50%, são terceirizados. Essa folha, no entanto, consome 60% dos recursos repassados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para o pagamento de procedimentos e isso leva a um problema muito maior: dívida. Com fornecedores públicos, a cifra já passa dos R$ 11 milhões, e com o INSS patronal, chegou a R$ 2 milhões apenas entre janeiro de 2006 e maio de 2007.
Até 2005, a dívida atingiu R$ 8 milhões com o INSS patronal, mas foi renegociada pela própria UnB. Para arcar com esse débito, no entanto, a instituição teve de usar recursos de custeio que poderiam ser destinados a atividades acadêmicas. Além disso, segundo estimativa do decano de Administração da UnB, Erico Weidle, o hospital opera com déficit de R$ 500 mil mensais, tendo em vista que recebe R$ 2,1 milhões do SUS e que seus custos são superiores a esse montante.
“Isso faz com que o HUB perca credibilidade para negociar preços mais baixos para insumos, o que aumenta os problemas”, detalha Weidle. A falta de recursos para investimento, na verdade, é uma das principais fragilidades, pois pode fazer a crise visível para a população atendida no hospital. Entre 17 e 30 de abril de 2007, por exemplo, os seis elevadores do HUB entraram em colapso e isso obrigou a direção a suspender cirurgias porque as salas estão no terceiro andar do prédio e não seria possível levar os pacientes pelas escadas. Além disso, pessoas já internadas tiveram dificuldades para circular pelas instalações. A UnB teve, novamente, de encontrar uma saída. Tirou das próprias contas R$ 500 mil para a compra de novos elevadores.
Entre os dias 11 e 22 de fevereiro deste ano, foi a maternidade do HUB que parou pela falta de médicos pediatras. A solução, dessa vez, surgiu com a ajuda da Secretaria de Saúde do Governo do Distrito Federal, que cedeu seis neonatologistas ao hospital. “Nossa dificuldade central é relativa a recursos humanos: faltam plano de carreira, salários competitivos e vagas em concursos”, lamenta o diretor do HUB, João Batista de Sousa.
O reitor da UnB, Timothy Mulholland, vai além. Ele afirma que, atualmente, os HUs trazem dificuldades para as instituições às quais estão vinculados, tanto porque são entes sem sustentabilidade própria quanto porque as universidades não recebem recursos especiais para seu sustento. “O problema é estrutural e demanda ação de Estado”, afirma o reitor. Para ele, mudar o regime jurídico não resolverá o problema caso não sejam concedidas vagas em concurso para reduzir o quadro terceirizado. “Se suprirem o pessoal, o custeio se equilibra. O que não dá é para a universidade usar recursos de atividades acadêmicas, que já são escassos, para pagar a assistência à saúde”, reforça Mulholland.
ENTREVISTA JOSÉ GOMES TEMPORÃO
Aposta no novo modelo de gestão
O ministro da Saúde, José Gomes Temporão, é abertamente favorável à adoção do modelo de fundações estatais de caráter privado para resolver os problemas dos hospitais federais, universitários ou não. Veja as principais opiniões dele sobre o assunto:
UnB NOTÍCIAS – O que se busca com a adoção do modelo de fundações estatais de caráter privado?
José Gomes Temporão - A idéia é profissionalizar os hospitais públicos federais. A proposta é inovadora e tem dois focos principais: qualificar o trabalho dos profissionais e o atendimento à população. A questão central é mudar a cultura institucional, que deverá ser menos preocupada com os aspectos burocráticos da execução do trabalho e mais com o desempenho, com a qualidade do resultado.
UnB NOTÍCIAS – O modelo serve para os hospitais universitários federais?
Temporão - Com certeza. Inclusive, começaremos pelos nove hospitais do Ministério da Saúde e os 45 do Ministério da Educação.
UnB NOTÍCIAS – A mudança pode resolver a crise dos HUs?
Temporão - A fundação também vem para resolver a crise. Nas últimas décadas no Brasil, criaram-se instrumentos heterodoxos – as fundações privadas de apoio – para tentar suprir as deficiências da administração direta. A nova proposta das fundações elimina a necessidade desses artifícios.
UnB NOTÍCIAS – E quanto ao problema de atualização da contratualização?
Temporão - O modelo de contratualização, iniciado pelo Ministério da Saúde com os hospitais de ensino e entidades filantrópicas, limita-se à mudança de padrão de financiamento e ao estabelecimento de relações entre o gestor local (secretários municipais de saúde) e o hospital para firmar metas. Tais iniciativas estão dentro da proposta das fundações, mas esta vai além. Visa a criar modelo no qual a organização passará a operar em padrão profissional de gestão e contratualização e prevê a troca do padrão da relação contratual dos funcionários com o Estado, saindo do regime jurídico único para a CLT.
UnB NOTÍCIAS – O ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, chamou de gambiarras administrativas a contratação de pessoal. Além disso, os HUs têm dívida de mais de R$ 400 milhões. O novo modelo resolve essas questões?
Temporão - Todo processo de transição da situação atual para um novo modelo deve ser planejado. É claro que as fundações de apoio privadas, que contratam funcionários para hospitais do MEC e do próprio MS, mudarão radicalmente seu papel. Deixarão de cumprir função de tampão para voltar a sua missão original, a de apoio institucional a pesquisas e estudos. A nova fundação estatal não precisará das fundações de apoio para resolver problemas operacionais. O que teremos de fazer é sanear os pontos questionados pelo Tribunal de Contas da União e pelo Ministério Público Federal.
UnB NOTÍCIAS – A relação entre MEC e Ministério da Saúde muda com a adoção das fundações?
Temporão - Na essência, não. Mas se aproxima, pois passaremos a ter o mesmo modelo gerencial para os hospitais dos dois ministérios. Isso é um avanço porque poderemos ter padrões homogêneos e comparar o funcionamento das instituições e seu desempenho, o que hoje é impossível.