Grilagem oficializada e omissão ameaçam patrimônio público(II), por Osmar Pires Martins

Jornal Diário da Manhã, 01/08/2007

Grilagem oficializada e omissão ameaçam patrimônio público(II), por Osmar Pires Martins

A controversa questão sobre a dominialidade da área localizada entre as avenidas T-3 e T-5, em frente ao Parque Vaca Brava, no Setor Bueno, em Goiânia, é aqui discutida com base nos documentos constantes do processo nº 8.676.127/95. Neste, encontra-se o embargo do órgão ambiental do município à pretensão de uma empresa particular em construir uma torre comercial, assim como o parecer da Chefia do Patrimônio Imobiliário da Procuradoria-Geral do Município de que o terreno “não pertence e nunca pertenceu ao Município”.
Buscando solucionar o problema, a Assessoria de Planejamento Ambiental da Semma, através do assessor João Batista de Deus, geógrafo, doutor em Geografia Humana pela USP e professor da UFG, juntamente com a equipe da arquiteta Normalice Maria de Queiroz, da Coordenadoria de Desenvolvimento Ambiental, elaboraram um correto e aprofundado relatório técnico, no qual os mapas do Setor Bueno, arquivados na prefeitura, foram digitalizados, georreferenciados, analisados e confrontados com o memorial descritivo do loteamento, inscrito sob o nº 15 e transcrito sob o nº 1.062 no Cartório de Registro Geral, em 08/02/1951. Numa escala detalhada, com máximo grau de acerto, o estudo concluiu que houve uma violenta privatização de 356 mil metros quadrados de áreas públicas no Setor Bueno. O Núcleo de Apoio Jurídico da Semma, por intermédio da assessora Lílian Ponciano Santos, advogada OAB-GO 13219, e da bacharel em Direito Tatiana Borges de Souza, emitiu brilhante parecer jurídico que comprovou a dominialidade pública da área com base na doutrina, jurisprudência e legislação de uso do solo.
Desde o Decreto-lei nº 58/1937 até a vigente Lei Federal nº 6.766/79, encontra-se estabelecido que a inscrição do loteamento torna inalienáveis, isto é, não podem ser doadas ou vendidas a quaisquer particulares, as vias de comunicação e os espaços livres constantes do memorial e da planta que, no plano de loteamento do Setor Bueno, totalizavam 35% da área parcelada. O confronto dos mapas georreferenciados com o memorial descritivo comprovou que o terreno da T-3 com a T-5 integra este percentual de bens públicos. Assim, acatando os pareceres técnico e jurídico, o titular da Semma protocolou, em 1995, na Procuradoria-Geral do Município (PGM) e na Procuradoria-Geral de Justiça (MP), requerimento de providências em defesa de uma praça pública, com toda a documentação pertinente. A PGM calou-se. A promotoria de urbanismo emitiu parecer a favor da empresa particular e o Conselho Superior do MP arquivou o processo. Diante disso, a empresa tentou novamente construir o prédio em 1998. A Associação dos Protetores do Parque Vaca Brava reagiu, abraçou a praça, e requereu novo posicionamento do MP, que reabriu o inquérito civil público. Lamentavelmente, uma década depois, não se tem notícia do ajuizamento da ação civil pública.
O desígnio traçado pela omissão, no presente caso, depende de uma condição necessária, mas não suficiente, qual seja, a ação dos agentes dilapidadores em complemento à insuficiente consciência sobre o patrimônio coletivo. Quando o coletivo reage, por incipiente que seja, inibe a ação dos grileiros; quando permanece passivo, avança. No caso, a cadeia vintenária de um imóvel originalmente público foi forjada em nome de uma empresa particular, sem que a Câmara Municipal o tenha desafetado e o prefeito o tenha alienado. A transferência do bem público decorreu da ação do loteador-grileiro que, no cartório, lançou a transcrição do loteamento sobre os espaços livres nele constantes e obteve, ilegalmente, a conseqüente matrícula; que, no município, requereu o uso do solo e o alvará de construção numa área pública como se particular fosse.
O caso da praça da T-3 com a T-5 é apenas uma pontinha do “iceberg” que expõe a vilipendiosa ação dos grileiros urbanos. O assalto aos bens de uso comum do povo enriquece poderosos grupos que agem à sombra de um enfraquecido poder público. Até a década de 1950, os planos de loteamento urbano de Goiânia obedeceram as diretrizes do plano original, elaborado pelo arquiteto-urbanista Attílio Corrêa Lima. Uma característica deste plano é a elevada disposição de espaços livres e verdes por habitante, que, em 1938, era de 122 metros quadrados. Decorridos 63 anos, em 2001, cada cidadão goianiense dispunha de 100 metros quadrados. Houve, assim, uma redução de 18% neste índice, correspondendo à privatização de 8,5 milhões de metros quadrados de áreas públicas. Caso não se elimine este processo de dilapidação, o patrimônio goianiense será corroído em 3,65% a cada ano, e o índice de área verde decairá para 45 metros quadrados no ano de 2015. Até o dia em que não haverá mais praças ou parques para recreação, descanso e reconciliação das crianças de todas as idades com a vida urbana.