Transtornos mentais deixam de ser tabu

Jornal Hoje, 10/08/2007

Transtornos mentais deixam de ser tabu

Carla Lacerda

Existem barreiras, preconceitos, dificuldade de expor o assunto, tentativa de negação. Mas eles são comuns. E, aos poucos, os transtornos psiquiátricos começam a fazer parte das rodas de conversa dos brasileiros. População e personalidades públicas parecem estar dispostas a quebrar o tabu que envolvia o tema. Comentam, pesquisam na internet o que antes ficava restrito aos consultórios dos especialistas. E assumem quando são protagonistas do problema. Na semana passada, a atriz Cássia Kiss – que interpreta a Zilda na novela Eterna Magia, da Rede Globo – confessou sofrer de bulimia e transtorno bipolar.

Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) apontam que 12% da população sofre de transtornos psiquiátricos (3% considerados severos e persistentes, e 9%, comuns). No Brasil, de acordo com pesquisa da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), divulgada em outubro passado, 17 milhões de pessoas afirmaram ter ou conhecer um familiar com transtorno mental. A depressão desponta como a campeã em números de incidência (casos novos) e prevalência (casos existentes), segundo detalha o psiquiatra e professor da Universidade Federal de Goiás (UFG) Wanderly Barroso Campos: 6% e 30%, respectivamente, em relação ao número absoluto da população.

Também docente da UFG, o psiquiatra Lúcio Malagoni Cardoso explica que os transtornos mentais estão divididos em grandes grupos. Existem os psicóticos (com distorções de juízos da realidade, como a esquizofrenia), os de ansiedade (fobia social, síndrome do pânico, transtorno obsessivo-compulsivo), os de humor (depressão, transtorno bipolar) e os alimentares (exemplos clássicos são a bulimia e a anorexia). “São freqüentes ainda as co-morbidades, situação em que o indivíduo apresenta dois ou mais desses transtornos”, assinala.


EM 2020

De acordo com o especialista, os transtornos de humor e os de ansiedade estão entre as grandes causas de perda de dias de trabalho nos países ocidentais. Relatório da OMS de 2001 confirma a constatação e faz prognóstico nada animador: em 2020, a depressão será a segunda causa de incapacitação no mundo – ficará atrás apenas do grupo de doenças cardíacas.


Malagoni destaca a alta taxa de prevalência dos transtornos do humor, que gira em torno de 15% nos homens e pode atingir 25% no sexo feminino. Sobre o transtorno bipolar (que mescla fases de tristeza e euforia), o psiquiatra alerta: “Quando as fases de euforia são leves, pode haver confusão com quadros de depressão unipolar, porque o indivíduo se sente apenas mais disposto, energizado”, afirma, ao revelar que 50% dos quadros bipolares têm essa incerteza diagnóstica inicial.

O cenário, porém, pode ser mais desalentador. O psiquiatra estima que apenas 25% a 50% dos deprimidos chegam a procurar ou a receber ajuda médica, e porcentagem menor chega ao psiquiatra, que tem a maior probabilidade de fazer o diagnóstico correto. “Muitos são tratados por ginecologistas, cardiologistas, neurologistas”, enumera. Como dicas de prevenção – no caso de coibir os fatores externos (há também a predisposição genética) –, o especialista aconselha a população a ter hábitos saudáveis, com tempo adequado para lazer e redução da carga de estresse. É recomendável também evitar o consumo indevido de medicamentos e o uso de tabaco, álcool e drogas ilícitas.


DEPRESSÃO É SEGUNDA CAUSA DE AFASTAMENTO DO TRABALHO

Pesquisa inédita da Universidade de Brasília (UnB), divulgada no fim do ano passado, analisou 26 milhões de registros de trabalhadores ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) para descobrir as doenças que mais afastam os brasileiros, temporária ou definitivamente, de suas funções. Com diferença de apenas 0,3%, a depressão aparece no levantamento em segundo lugar, com índice de 10%, atrás da ocorrência de fraturas (10,3%). Os transtornos ansiosos ocupam a quinta posição, com 3,8%.


O estudo também delimitou as áreas que apresentam mais casos de afastamento por transtornos mentais. Apesar de os dados terem sido compilados entre 1999 e 2002, o resultado reflete bem a realidade atual do País, principalmente no que se refere à crise nos aeroportos. À frente de setores como saúde e segurança pública, o transporte aéreo consolidou-se como o terceiro ramo de atividades a apresentar mais pedidos de licença por motivos como depressão e estresse.

De acordo com a pesquisa, de cada 10 mil registros de licenciamentos feitos ao INSS, 228,96 diziam respeito a trabalhadores da aviação – atendentes, aeronautas (pilotos, comissários de bordo e aeromoças) e controladores de vôo. O primeiro lugar foi liderado pela atividade de extração de petróleo, com 496,15 em cada 10 mil, e, em segundo, o ramo imobiliário, com 233,02.


Coordenado pela enfermeira Anadergh Barbosa-Branco, especialista em Medicina do Trabalho, o censo foi realizado com todos os brasileiros que trabalham sob o regime da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), em empresas privadas ou públicas.



'TINHA MEDO DE ATRAVESSAR A RUA'


Há oito anos, ela sentia os primeiros sintomas: taquicardia, tremedeira, falta de ar, agonia de ficar em locais públicos. “Cheguei a desmaiar três vezes em supermercados e feiras. Era uma sensação terrível. Eu tinha medo até de atravessar a rua e visitar a minha mãe, que mora em frente a minha casa”, relata a secretária Hilza Aparecida Pereira Arantes, 41, que descobriu, aos 33 anos, ser portadora de síndrome do pânico.

A crise apareceu quando a senhora, moradora do bairro Fama, enfrentava problemas familiares. “Acho que serviu como gatilho para o surgimento da doença.” A primeira orientação médica, conta Hilza, foi procurada no ginecologista. “Depois segui tratamento de um cardiologista. Não quis ir a um psiquiatra. Se fosse, acho que viveria dopada de remédios”, pontua. A justificativa da secretária confirma alerta do psiquiatra da Universidade Federal de Goiás (UFG) Lúcio Malagoni Cardoso: são poucas as pessoas que hoje procuram tratamento com o especialista indicado para o caso.


Mesmo assim, Hilza diz que obteve sucesso no tratamento. Após tomar mais de dez tipos de remédios, em 2005 ela parou com o floxetina. “Agora, tomo apenas o rivotril, em dosagem menor. Antes, eram dois miligramas, duas vezes ao dia. Hoje, tomo meio miligrama, dia sim, dia não”, detalha. “A crise está controlada, mas tenho medo dela voltar”, confessa.

INTERNAÇÃO


O técnico em saneamento Francisco Roberto da Costa, 40, não imaginava que a depressão pudesse ter conseqüências tão danosas. Em 1993, surgiam os primeiros sintomas. O morador do Setor Califórnia sentia tristeza, não tinha ânimo, perdeu o apetite.

Mas preferiu não dar atenção aos sinais e esquivou-se de procurar ajuda médica. Resultado: em 1995, de maneira forte, a depressão o colocou em uma cama de hospital por 40 dias. Mas não seria a única vez.


Após o período de internação, seu Francisco começou a tomar remédio controlado e a ser acompanhado por um psiquiatra. Em 2000, nova falha. Julgando-se recuperado, o técnico parou com a medicação sem avisar o especialista. A crise voltou mais forte e seu Francisco ficou dois anos literalmente de cama. “Ele não andava, falava, chegou em um estado de coma. Emagreceu 20 quilos, ficou com apenas 55”, relembra a esposa Lucinete Sousa Silva, 36, ao informar que o marido se aposentou por causa do problema.
Hoje, seu Francisco está bem. Sorri, gosta de passear, brinca com os sobrinhos. E não passa um dia sem tomar a medicação recomendada pelo médico.