Fidelidade partidária: de amores e interesses, nada mais
Jornal O Popular, 24/08/2007
Fidelidade partidária: de amores e interesses, nada mais
Heloisa Dias Bezerra
Letrados e românticos como poucos, certamente nossos deputados federais se inspiraram nos versos do Soneto da Fidelidade, de Vinicius de Moraes, para fazer e aprovar a reforma política à brasileira que acaba de sair do forno da Câmara dos Deputados. Como o forno estava quente demais, a pobrezinha ficou um pouco chamuscada, daí tiveram de aparar as beiras, jogar uma parte no lixo e servir o que sobrou à mesa da democracia contemporânea.
Vale a pena uma pitada de flash-back, pois o projeto de reforma política era antigo, aliás, os projetos. Muitas e interessantes propostas, várias e irreconciliáveis divergências, que passaram por um longo processo de acomodamento, sendo costuradas, recortadas, incluídas e excluídas, envolvendo governistas e oposicionistas dedicados à causa da reorganização do sistema político e eleitoral brasileiro. Um sistema com todo o tipo de brechas para a sempre livre atuação tanto dos partidos quanto dos deputados. Além disso, um sistema que ainda permite a alteração das regras antes, durante e depois do jogo, o que em tese contraria o ideal dos processos democráticos. Um exemplo recente é a intervenção do STF que fez cair por terra a cláusula de barreira, o que resultou em ganho de causa para os derrotados nas eleições de 2006 que haviam sido barrados no baile da distribuição de benesses em função de uma regra que media o desempenho dos partidos nas urnas. Se a medida era pouco democrática ou ajudava a moralizar a política partidária; se ajudaria na organização do nosso sistema ou impediria a pluralidade de idéias no Congresso; isso, nós nem tivemos tempo de experimentar. Dos males o menor, caso o STF tivesse tomado a decisão antes do pleito eleitoral, pois além de estar prevista desde 1995 pela Lei dos Partidos Políticos, todos os atores políticos relevantes, ou seja, partidos e eleitores, participaram do processo eleitoral de 2006 sabendo que o processo incluía a cláusula de barreira.
Mas do que nos interessa esse tipo de rememoração? Para compreender melhor o modo como os atores políticos brasileiros se movimentam nas arenas decisórias, sempre contrariando um dos princípios fundamentais da democracia que diz que as regras só devem ser mudadas antes do jogo e respeitando a anualidade, que nada pode ser retroativo e que os resultados do processo, quaisquer que sejam, devem ser respeitados na íntegra. Caso contrário não há previsibilidade na disputa e o processo fica enfraquecido, perde o respeito e a confiança dos cidadãos-eleitores. Tanto o Legislativo quanto o Judiciário brasileiro têm pecado no que se refere a esse princípio, com decisões que podem colaborar para a esclerose do sistema democrático. Chamamos isso de casuísmo – o que queremos dizer é que são decisões em função de um caso específico, de um momento, de uma conjuntura, fundamentalmente de interesses dos grupos políticos majoritários.
Analisando os desdobramentos relativos ao projeto de reforma política, percebemos idêntica situação. Em maio, o Departamento de Ciências Sociais da UFG organizou o seminário Reforma Política Brasileira: Impasses e Propostas, com a intenção de avaliar os principais itens da proposta bem como a viabilidade de aprovação pelos parlamentares. Recebemos especialistas e os deputados responsáveis por conduzir o projeto na Câmara, dois deles de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM) e Rubens Otoni (PT), e João Almeida (PSDB-BA). Surpreendeu o entusiasmo dos deputados e a plena certeza de que desta vez a reforma seria aprovada. A negociação já estava muito avançada e os partidos manifestavam boa dose de concordância em relação aos pontos principais, entre eles a fidelidade partidária.
Ora, se havia tanto entusiasmo com a possibilidade de aprovação, por que o projeto final acabou esquartejado e reduzido a uma clara tentativa de salvar alguns deputados que estavam com a cabeça na guilhotina? Essa não é a única pergunta que nos inquieta, já que os que faziam oposição à reforma política também não compareceram em massa para votar, o que ficou patente no resultado final da votação em Plenário: apenas 34 votos contrários.
A esta altura do jogo, brasileiros e brasileiras de todos os recantos do País devem estar a se perguntar sobre o que de fato aconteceu nas entrelinhas dos acertos e acordos no Plenário da Câmara, dos motivos para os oposicionistas terem debandado na última hora, das causas que conduziram um partido como o PT, antes tão interessado na moralização do fazer político, a se alinhar aos bandoleiros e infiéis de sempre. Amigos e amigas, só uma palavra define tudo isso: interesses. Interesses díspares, interesses momentâneos, interesses futuros, interesses financeiros, interesses grandes e pequenos. O desfecho (ou quase) da reforma política à brasileira nos faz lembrar Vinicius de Moraes, é claro, que fecha o seu Soneto da Fidelidade com versos intrigantes e que desde sempre dão margem a interpretações variadas:
“Que não seja imortal, posto que é chama/ mas que seja infinito enquanto dure”. Será que o poeta propõe a infidelidade rotineira ou apenas autoriza o troca-troca logo após findo o amor? Para nossos deputados, parece que a infidelidade pode ser rotineira, pelo menos enquanto interessar ao grupo político que está no comando, como está interessando hoje ao PT do presidente Lula e como já interessou ao PSDB e PFL/DEM do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
Mas não foi somente o soneto da (in)fidelidade que me veio à mente. Lembrei-me de Hobbes, é claro, autor do belo e clássico O Leviatã, que descreveu de modo sombrio o que chamou de natureza humana, um conceito já meio em desuso. O autor diz que os homens (e mulheres) são movidos única e exclusivamente por interesses relativos a poder, honra e glória, tudo muito pessoal, nada em favor do outro, nada por altruísmo, tudo por egoísmo e auto-interesse. Uma descrição feia e sombria, mas que nos dá uma dica dos motivos que impulsionaram nossos parlamentares. Bem lá no fundo, a grande maioria é contrária ao troca-troca de partidos que pode prejudicar qualquer agremiação. No entanto, o interesse pontual falou mais alto e o que restou de unanimidade foram uma esquizofrênica tentativa de salvação dos recalcitrantes e o desejo de autoproteção futura, para os próximos pleitos. Como nem governistas nem oposicionistas podem prever o amanhã, o melhor é uma regra não muito rígida, mas com portas e janelas que podem ser abertas e usadas num momento de especial necessidade... E interesse.
Heloisa Dias Bezerra é cientista política e professora da Universidade Federal de Goiás heloisadb@fchf.ufg.br