Uma mulher à frente do seu tempo
Jornal Hoje, 05/09/2007
Uma mulher à frente do seu tempo
Na segunda matéria da série Personagens Goianos, o HOJE relata a história de uma mulher pioneira em vários segmentos: educação, política e no movimento feminino. Ana Braga foi professora de pessoas ilustres ao longo de mais de duas décadas, no Lyceu de Goiânia. Formada em Filosofia e Direito, já foi vereadora, secretária de Estado e é fundadora da Academia Feminina de Letras
Durante mais de duas horas, a sala de visitas de um apartamento do Setor Sul tornou-se ontem uma sala de aula sobre História de Goiás. Bastou que a professora contasse um pouco de sua vida para que viesse à tona boa parte da evolução educacional, política e de luta pelos direitos da mulher nos Estados goiano e tocantinense. Desde sua infância, que remonta a trajetória de cidades do interior (numa época em que o cerrado ainda “reinava” em plena riqueza natural) até a entrada na Academia Goiana de Letras, no ano passado, a biografia de Ana Braga é um registro vivo de uma população que ajudou a constituir Goiânia.
Aos 83 anos, seu currículo é memorável: além de professora, já foi advogada, procuradora de justiça, vereadora, secretária de Estado, secretária de Ação Social, primeira-dama, deputada estadual e fundadora das academias Femininas de Letras de Goiás e do Tocantins. Seu primeiro emprego como mestre, aos 17 anos, recebeu das mãos de Pedro Ludovico, após ela mesma fazer o pedido. Ele a nomeou professora na cidade de Paraúna. De lá, participou de um concurso proposto pelo diretor regional de Educação (o secretário de Educação da época) sobre densidade demográfica escolar em Goiás.
Como prêmio, teve o direito de escolher a escola em que quisesse lecionar. Foi então que voltou para a capital goiana, onde foi lecionar no Grupo Escolar Padrão. Mais tarde, foi nomeada novamente pelo governador, desta vez para trabalhar no Colégio Lyceu de Goiânia, onde ficou por 22 anos, nas décadas de 40 e 50. Antes de ocupar o cargo, recebeu a responsabilidade de realizar um bom trabalho na escola. “Pedro Ludovico disse, na minha nomeação: ‘Seja uma ótima professora, porque o Lyceu é a menina dos meus olhos’. Foi lá que ele fez o ginásio”, conta.
Pela sua sala de aula de História Geral e do Brasil, já passaram Irapuan Costa Júnior (ex-governador), Pedro Jardim (diretor-presidente da Brasil Telecom), Iris Rezende (prefeito de Goiânia e ex-governador), Castro Filho (ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça), dentre tantos outros nomes importantes para o Estado. Ana Braga se lembra com saudade da época em que o colégio era considerado com o melhor ensino da região.
“O Lyceu já formou homens maravilhosos. Era uma verdadeira instrução de princípios. Não era qualquer um que lecionava lá. Hoje, a escola não possui nomes nem de professores, nem de alunos”, lamenta. Quanto aos alunos, Ana Braga diz que possui verdadeira veneração por todos. Para ela, um dos grandes segredos para o bom professor é não diferenciar ou discriminar seus estudantes.
“Não existe criança bonita nem feia, todos são alunos queridos. É preciso um tratamento com carinho para que haja uma confiança e interesse mútuo em se ajudar.” De toda a sua história, apesar da relevância política, é na área educacional que a professora traduz o maior destaque de sua vida. “Para mim, o mais importante foi a instrução e a convicção de que ajudei a formar o caráter de muitos cidadãos.”
FORMAÇÃO INTELECTUAL E CIDADÃ
Ana Braga é de um tempo em que a formação do aluno era muito mais do que aprender regras de matemática e redação. No Colégio Santa Clara, onde fez o normal, além das matérias tradicionais, havia uma preocupação com a cidadania, artes, línguas, além do ensino de habilidades essenciais para moças daquela época (atividades manuais como costura e bordado). A professora lamenta a forma simplificada com que a educação é tratada atualmente.
“Apesar das boas notas, me entristeço quando vejo meus netos na escola, sobretudo em termos de gramática e português. Hoje, tudo é à base de internet, máquinas de calcular e outras tecnologias. E o cérebro está sendo abandonado.” A professora natural da cidade de Peixe, no Tocantins (quando ainda era parte de Goiás), aprendeu a ler com o avô. O fazendeiro, embora fosse um homem simples do campo, era um autodidata que se inteirava das novidades da época.
A continuidade de sua alfabetização ocorreu na antiga Descoberto da Nossa Senhora da Piedade, hoje Porangatu, onde o pai carpinteiro passava temporadas para trabalhar. A mestra era Adilina, outra autodidata, que não só ensinava as letras, mas cuidava das alunas que, muitas vezes, ficavam em sua casa.
“Era uma mestra também em civismo”, afirma. Mas foi em Peixe que teve a primeira professora com formação “de verdade”: Fany de Oliveira Macedo. “Foi uma mulher maravilhosa. Ela que aconselhou meu pai a me levar para um lugar onde eu pudesse continuar meus estudos.” Além de normalista, Ana Braga fez ainda Faculdade de Filosofia (que deu origem à Universidade Católica de Goiás) e de Direito, na Universidade Federal.
FAMÍLIA
Ana Braga foi casada duas vezes. Teve ao todo sete filhos (um já falecido) e sete netos. Do primeiro marido, fazendeiro Luiz de Queiroz, ficou viúva com apenas 2,5 anos de casada. Ele morreu num acidente rodoviário, após um tombamento de um caminhão. Na tragédia, a professora perdeu oito membros de sua família. Na época, estava grávida de seis meses da terceira filha.
Meia década depois, casou-se novamente. Com Trajano Machado (de quem se divorciou posteriormente), Ana Braga teve mais quatro herdeiros. O segundo morreu jovem, afogado. Apesar dos anos, a perda do filho ainda é uma ferida exposta na mãe. “A dor nunca cura, nem passa. Só ameniza.” Enquanto esposa de Trajano, foi primeira-dama de Tocantinópolis e de Porangatu, onde fundou as primeiras escolas de ensino médio e a biblioteca.
LUTA PELA REDEMOCRATIZAÇÃO DO BRASIL
Ana Braga esteve à frente do seu tempo, não só por ser uma mulher a entrar na política ainda nos idos da década de 40, mas por tê-lo feito muito jovem. Com apenas 24 anos, ela foi eleita a primeira vereadora de Goiânia (juntamente com Julieta Fleury). Tudo aconteceu após se incorporar à luta de defesa pela redemocratização do Brasil, contra a ditadura de Getúlio Vargas. O prestígio entre os eleitores era tanto que a beneficiou antes mesmo de ir às urnas. “Não gastei um tostão na campanha. O povo fez tudo por mim”, destaca.
Anos depois, lá estava ela, compondo a Comissão de Interiorização da Capital Federal. Ainda estudante de Direito, no Movimento Mudancista, viajou pelo interior de Goiás e para fora dele para defender a tese da necessidade da transferência do executivo nacional para o planalto goiano. “Eu explicava o quanto ficaria mais fácil de se expandir a educação por todo o País a partir da interiorização.”
Como boa oradora, aproveitou a apresentação da tese no 2º Congresso de Educadores, em Porto Alegre (RS), realizado em 1958, para arrebanhar o apoio de vários Estados. “Os Estados do Sul não queriam a mudança. O Rio de Janeiro era o adversário mais difícil na questão.” Ana Braga chegou a levar as irmãs Barra (uma dupla de cantoras goianas) para participar do evento, o que resultou no convite para a inauguração da Rádio Farroupilha. Tudo isso, junto com o discurso exaltado e apaixonado da professora, chamou a atenção da imprensa. “Fui considerada a vedete do congresso.”
A carreira política teve ainda passagem pela Assembléia Legislativa, como deputada estadual, secretária de Estado e de Ação Social. Ana Braga diz que atuou com coragem como deputada, já que não tinha medo de falar o que fosse necessário, independente se fosse para antagonista ou até aliado político. Talvez por isso fosse respeitada. “Nunca tive problema na minha administração. No meu gabinete, nunca foi militar fazer cobrança.”
CONQUISTA FEMININA
“Antes de mim, ninguém falou sobre a valorização social da mulher”, afirma com orgulho Ana Braga. Ela destaca a conquista feminina ao longo das décadas nas mais diversas áreas: profissional, política, educacional, cultural, dentre outras. Mas não deixa de observar que a luta ainda é longa.
A professora cita o exemplo da Lei Maria da Penha, que endurece as penas para o agressor, mas que não conseguiu acabar com a violência contra as mulheres. “Queria que muitas moças tivessem a coragem idealista de palmilhar esses caminhos árduos para lutar por dias melhores para nós”, frisa.