Recordações de um anti-herói
Jornal O Popular, 11/09/2007
Recordações de um anti-herói
O Nome da Morte, de Klester Cavalcante (Editora Planeta)
Martins Fontes lança nova edição de Memórias de Um Sargento de Milícias, obra que até hoje desafia as tentativas de classificá-la em escolas e estilos
Acervo/Editora Martins Fontes
Desenhos de F. Aquarone que ilustraram a publicação de 1840 estão na nova edição de Memórias...
Gismair Martins Teixeira
Especial para O POPULAR
O ano de 1881 marca o início do realismo na literatura brasileira, com a publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Se o marco fosse recuado em quase 30 anos, mais precisamente para 1855, com o aparecimento de um outro Memórias..., não estaria de todo errado, a despeito da opinião contrária de Mário de Andrade, pois estaria expressando o embate acerca de uma obra que divide a opinião de importantes nomes na história da crítica literária brasileira, como Antonio Candido, José Veríssimo, Darcy Damasceno, Josué Montello e o próprio Andrade. Assim, Memórias de Um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, é uma dessas obras temporãs em relação às classificações dos estilos de época e escola, e que deixam evidências do como essas fronteiras são fluidas.
Curiosidades históricas envolvendo autor e obra não faltam. Nascido em 1831, no Rio de Janeiro, Manoel Antônio de Almeida é o segundo dos quatro filhos de um modesto casal de portugueses. Apesar das dificuldades financeiras da família, Almeida obteve êxito nos estudos, formando-se médico, profissão que não chegou a exercer. Aos 20 anos de idade estreava na imprensa, atividade que se revelaria uma grande vocação, escrevendo o artigo Civilização dos Indígenas. Neste trabalho, ataca rispidamente o projeto do historiador Francisco Adolfo Varnhagen, que propunha restabelecer o movimento das bandeiras para ocupar a terra dos índios e escravizá-los. Era a veia romântica do escritor, voltada para o indianismo que marcou importante segmento estético do romantismo brasileiro.
Em A Pacotilha, suplemento dominical do Correio Mercantil, Antônio de Almeida publica Memórias de Um Sargento de Milícias em capítulos que não são assinados. Isso entre os dias 27 de junho de 1852 a 31 de julho de 1853. Em 1855, sairia pela Typografia Brasiliense de Maximiano Gomes Ribeiro o volume da obra, assinado ainda sob o pseudônimo de Um Brasileiro.
Em 1858, é nomeado administrador da Tipografia Nacional, cargo em que deu oportunidade de trabalho a um tímido mulato, desconhecido à época, um certo Joaquim Maria Machado de Assis. Na manhã de 28 de novembro de 1861, Almeida morre no naufrágio do vapor Hermes, acidente ocorrido a algumas milhas da costa. Há quem afirme que antes de embarcar o escritor tivera um mau agouro em relação à viagem ao cruzar pelo caminho com um sacerdote católico.
Essas notas históricas, à exceção da última, constam da cronologia do volume de Memórias de Um Sargento de Milícias, na bem cuidada edição da Editora Martins Fontes. Ao final do volume, a editora republica o trabalho de F. Aquarone, que ilustrava a publicação de 1940. A presente edição foi preparada por Vadim Nikitin, que publicou como introdução o clássico estudo de Mário de Andrade sobre o romance de Maneco, forma íntima com que o modernista trata o escritor em seu curto ensaio.
Estudos clássicos
A narrativa de Memórias de Um Sargento de Milícias se passa à época de d. João VI, no começo do século 19. Leonardo Pataca e Maria das Hortaliças, pais de Leonardo Filho, o protagonista, se conhecem e passam a viver juntos a partir de uma viagem de navio para o Brasil. Já em terra, após o nascimento e o batizado da criança, Pataca flagra a mulher com outro homem. Os amantes fogem para Portugal. Com a separação, o menino é criado por um padrinho.
Da infância à fase adulta, Leonardo desenvolverá um caráter totalmente despreocupado e voltado às travessuras, acabando por se dar bem na maioria das vezes. A sua malandragem atrai a simpatia de outras personagens. Sua experiência no mundo da vadiagem faz com que, finalmente, seja escolhido por Vidigal, o temido chefe de polícia da cidade, para ocupar o cargo na tropa de soldados.
Esse enredo insólito para a estética romântica e para a época, com a presença do anti-herói que nega as qualidades do herói do romantismo tradicional, leva Mário de Andrade a concluir pela definição da obra como um romance picaresco, que se caracteriza pela presença do pícaro (malandro, bufão) que narra suas aventuras repletas de malandragens pelas diversas camadas da sociedade. Segundo Andrade, a verdadeira filiação de Memórias... é essa.
Um contraponto a essa posição do modernista, escrita em 1941, é apresentada por Darcy Damasceno em 1956, que prefere classificar a obra de Almeida como um romance de costume. A síntese da tese de Andrade, e da antítese de Damasceno, é extraída por Antonio Cândido num ensaio intitulado Dialética da Malandragem, publicado originalmente em 1970.
Nesse trabalho que evoca a dialética hegeliana em sua metodologia expositiva, Cândido aponta o que é pertinente ou não nas análises de Mário de Andrade e Darcy Damasceno. E conclui que o romance de Manuel Antônio de Almeida, apesar de seus traços picarescos e realistas, está mais para uma “fábula realista composta em tempo de allegro vivace”.
Ou seja, mesmo correndo o risco da superficialidade, não dá para deixar de pensar em Memórias de Um Sargento de Milícias, antes do Macunaíma de Mário de Andrade, como uma espécie de certidão de nascimento literária do famoso “jeitinho brasileiro”, para o bem ou para o mal. No plano estético, a conclusão possível – que está mais para uma confirmação –, é que, de fato, as fronteiras que demarcam as escolas em literatura são mesmo fluidas.
Gismair Martins Teixeira é mestre em Estudos Literários pela UFG e professor
TÍTULO:
¤ Memórias de Um Sargento de Milícias
¤ Autor: Manoel Antônio de Almeida
¤ Páginas: 267
¤ Editora: Martins Fontes
¤ Preço médio: 35 reais