O acidente que não acabou

Jornal Tribuna do Planalto, 07/09/2007

O acidente que não acabou


Odesson Alves Ferreira: em busca dos direitos dos "radioacidentados"

Hebert Regis

A abertura da cápsula do Césio 137 no Setor Aeroporto, em Goiânia, permanece depois de 20 anos como um desencadeador de dores e sofrimentos para as vítimas do acidente. As crianças que viram tudo aquilo de tão perto continuam, apesar de já adultas, marcadas pela agressividade e pelos erros cometidos no dia 26 de setembro de 1987, que se perpetuam até hoje, graças à desinformação e ao desrespeito das instituições públicas. Esta geração de crianças e adolescentes tenta reconstruir as suas vidas, apesar do temor do surgimento de doenças causadas pela radiação, perda dos familiares falecidos em decorrência da contaminação, preconceito e a forma que foram tratadas pelo Estado nos últimos 20 anos.

O psicólogo Júlio Nascimento estuda o acidente radioativo em Goiânia pelo prisma da subjetividade e da cidadania das vítimas. Ele afirma que o acidente em Goiânia foi atípico porque o Césio-137 deixou nas vítimas seqüelas – morais e físicas – e o risco de doenças crônico-degenerativas também nos seus descendentes. "Temos uma população de radioacidentados que nunca foi atendida no seu plano subjetivo, sendo uma forma pelo qual as pessoas reconhecem o mundo e a si mesmas", diz.

No estudo "Césio 137: Relatos da segunda geração do maior acidente radiológico do mundo", o pesquisador Alexandre Márquez Bittencourt, da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), afirma que as crianças e adolescentes ocupam um espaço diferente na tragédia, ao serem obrigados a lidar com dificuldades que ninguém conhecia. "Experimentaram o risco de esfacelamento da família, e tudo o que esta instituição representa, graças à ameaça do inimigo invisível, protagonista de um desastre cujos culpados não conseguiam identificar."

Telma Camargo da Silva, PhD em Antropologia e professora da Universidade Federal de Goiás (UFG), explica que o acidente rompe, de diversas formas, a trajetória de vida das vítimas e dos seus descendentes. Há o entendimento de que os radioacidentados tenham medo da propagação da doença em seus descendentes com a expectativa de um câncer. Com um raio de pesquisa marcado em dez anos, do período de 1988 a 1998, a pesquisadora mostra que o acidente abrange experiências sociais em um desastre que ainda se processa. E que não se sabe quando vai acabar. "O próprio sofrimento destas vítimas mostra que o acidente ainda não acabou", sustenta.

Memórias
Vítimas diretas do acidente, as então crianças e adolescentes na época da tragédia, segundo os especialistas, sofreram a perda de suas referências no momento de formação psíquica e moral, somadas à desintegração da própria família. Com sete anos na época da tragédia, Sílvia Nunes Fabiano tem uma vaga lembrança do dia em que as pessoas foram levadas à noite para o Estádio Olímpico, para o primeiro monitoramento do Conselho Nacional de Energia Nuclear (CNEM). "Chegaram gritando nas ruas, que quem tinha família, deveria ir para a casa, mas quem não tinha ia para o Estádio Olímpico", recorda.
Sílvia é sobrinha de Edson Fabiano e Ernesto Fabiano, que levaram pedrinhas de césio para as suas casas. "O nosso lote ficava no fundo da casa do Devair, que comprou a cápsula do Césio dos catadores", explica.

Aos cinco anos, Patrícia Nunes Fabiano viu atrás das grades da casa do vizinho suas bonecas serem arrancadas de sua casa. As suas memórias mais nítidas do acidente dizem respeito aos 40 dias que passou na Febem para desintoxicação. "Não tive infância. Era tomando remédio. Eram 10 banhos por dia", relembra. Patrícia diz que hoje as vítimas vivem no abandono. "São 20 anos de sofrimento em que a gente busca os nossos direitos", afirma.

Patrícia sofre hoje de algumas enfermidades, como hérnia de disco, enxaqueca, escoliose, dor nas articulações, entre outras doenças. Ela é filha de Santana Nunes Fabiano, amiga de Devair Ferreira, que abriu a cápsula de Césio e espalhou entre os familiares. Devair, que morava nos fundos da residência de Santana, na Rua 15-A, chamou Santana até o quarto da sua casa para lhe mostrar uma pequena quantidade do pó no quarto. "A luz azul começou a se espalhar pelo quarto. Logo falei para o Devair que não devia ser seguro, porque estava dentro de uma cápsula", explica. Como Devair e Maria Gabriela não tinham filhos, Santana lembra que os filhos viviam na casa do casal. "Depois disso, toda a minha vida se transformou em sofrimento. Já são 20 anos. Mas não tinha como saber", resigna-se. 

Patrícia viu seus irmãos, que na época tinham 9 e 7 anos, se mudarem para os Estados Unidos, "para esquecerem do acidente". "Eu não consigo esquecer, com aquele buraco bem na frente", fala, ao apontar o lote baldio onde ficava sua casa, que foi demolida. Por causa do preconceito, evita se engajar na luta em prol das vítimas, e, muitas vezes, até de comentar o assunto.

Para a antropóloga Telma, a luta das vítimas para receber a assistência correta do governo tem sido uma batalha difícil. "É como se as instituições públicas usassem o argumento da invisibilidade das partículas para invalidar as dores e o sofrimento das vítimas", critica.

Mobilização
O mesmo sentimento tinha a sua prima, Meirielle Chapadende Fabiano. Assim como Patrícia, Meirielle, com apenas 6 anos, assistiu os policiais militares e bombeiros invadirem sua casa e arrancarem todos os seus pertences ao menor sinal de irradiação, identificado pelo medidor. Assim como a sua memória sobre aquele dia, Meirielle luta hoje para que o maior acidente radiológico ocorrido em área urbana não seja esquecido. "A minha proposta é criar um memorial para o acidente, para que as pessoas nunca se esqueçam, e que isto nunca mais se repita", planeja.

Meirielle tenta reverter a raiva e a dor em motivação para o trabalho na Associação das Vítimas do Acidente do Césio, criada logo depois da tragédia, para a busca dos direitos dos radioacidentados. Para o presidente da Associação das Vítimas do Césio-137, Odesson Alves Ferreira, o medo da discriminação e a injustiça afastam os mais jovens da luta pelos seus direitos. "As vítimas não participam da Associação porque dizem que não vai ajudar em nada", analisa.

O psicólogo Júlio Nascimento explica que, no plano psicológico, as pessoas sofreram stress, pânico, angústia, sentindo o desamparo total, sentimento que se prorrogou ao longo desses últimos 20 anos. "É um acidente em conta-gotas, com uma injustiça que padece a vida das pessoas, cada vez que as instituições negam o acidente, as indenizações e a ajuda institucional às vítimas. Esta foi a maior injustiça que Goiás cometeu com os seus filhos", indigna-se.

Núcleo vai estudar o acidente

Durante o I Simpósio Interdisciplinar sobre o Acidente com o Césio-137, realizado na semana passada, a Universidade Católica de Goiás (UCG) oficializou a implantação do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Acidente com o Césio-137 em Goiânia. Esta é a primeira iniciativa institucional, depois de 20 anos, que tem o objetivo de incentivar um estudo sistemático do assunto pela comunidade científica. O núcleo, com as suas pesquisas, deve ajudar a esclarecer melhor algumas dúvidas sobre o acidente, além de contribuir para minimizar o sofrimento das vítimas, com o posterior auxílio aos radioacidentados.

O coordenador do Núcleo sobre o acidente, o psicólogo Júlio de Oliveira Nascimento, explica que, em sua fase inicial, o projeto deve começar com os pesquisadores da própria UCG. Numa segunda etapa, deve agregar acadêmicos de outras instituições. "A idéia é criar uma comunidade científica para incentivar pesquisas que ainda não foram feitas", explica. Na opinião do professor, esta é uma forma de reconstruir a história, de forma segura e detalhada, seguindo os métodos científicos. "O objetivo é devolver para as vítimas os resultados destas pesquisas."

O Núcleo já conta com a participação de seis professores da área de direito ambiental da UCG. A proposta, de acordo com Júlio, é ampliar as áreas de atuação, para áreas como Psicologia, Antropologia, Medicina e Radiologia. O jornalista Weber Borges, criador do documentário "Dossiê do Césio-137", considera importante a ação da UCG, por ser uma instituição consolidada, com respaldo acadêmico. "Sempre prometeram fazer um instituto para pesquisa e auxílio às vítimas, mas até hoje nada fizeram", critica.

Weber cobra do novo núcleo a integração das áreas médicas, para entender melhor as conseqüências do acidente nas vítimas e as possíveis seqüelas em seus descendentes. "A falta de conhecimento, depois de 20 anos do acidente, continua muito clara", diz. O presidente da Associação das Vítimas do Césio-137, Odesson Alves Ferreira, afirma que a aproximação com a universidade vai ajudar nas demandas dos radioacidentados, principalmente com as instituições públicas, sejam elas jurídicas ou médicas. O Núcleo, para Odesson, é uma garantia de que o acidente não seja esquecido. "Não queremos que isso ocorra com mais ninguém."