Entramos na era dos direitos humanos
Jornal O Popular, 15/09/2007
‘Entramos na era dos direitos humanos’
Cristiano Borges
Rosângela Chaves
O título acima é só aparentemente otimista. Pelo menos na opinião de Milton Meira do Nascimento, professor de filosofia da USP, para quem o fato de estarmos ingressando na “era dos direitos humanos” significa uma catástrofe. Crítico do discurso dos direitos humanos, Nascimento defendeu seu polêmico ponto de vista em uma conferência proferida durante o Colóquio Nacional de Direitos Humanos e Democracia, realizado em Goiânia na semana passada. Na visão de Nascimento, a noção de direitos humanos que herdamos do iluminismo, a qual se apresenta como uma verdade “incontestável”, é incompatível com a democracia, porque esta é por excelência o campo do debate, do conflito e do jogo de interesses, opondo-se, portanto, a todo ideal que se pretenda absoluto. Além do mais, para o estudioso, no mundo contemporâneo, o conceito de direitos humanos apresenta-se como vazio de sentido e só é aplicado para aquelas massas de pessoas que se vêem completamente destituídas da cidadania. Confira a seguir a entrevista que o professor, que é autor, entre outras obras, de Opinião Pública e Revolução (Ed. Humanitas), concedeu ao POPULAR:
Por que democracia e direitos humanos estão em confronto?
Em princípio não deveria haver nenhuma colisão, porque os direitos humanos foram a bandeira para a constituição da democracia moderna. Mas a afirmação dos direitos humanos como direitos incontestáveis, princípios indiscutíveis fundados na natureza, estabelece para eles um estatuto de uma verdade, por assim dizer, transcendental que se impõe a toda e qualquer forma de ação política possível. Retomando a expressão de Hannah Arendt, a verdade é incompatível com a política, porque a política é o lugar do conflito, é o lugar da solução de questões que dizem respeito ao interesse das pessoas e a democracia é exatamente esse regime em que as questões vão ser resolvidas por equacionamento da diferença entre as conquistas e os interesses. Isso faz parte do jogo democrático. A verdade metafísica, indiscutível, praticamente elimina a possibilidade de trabalhar com as diferenças. Você elimina o conflito. Toda vez que houver uma interferência na liberdade dessa natureza, a vida política passa a ser um terreno para ser ocupado por um tipo de ação fundamentalista.
Então, o discurso de direitos humanos acaba
escamoteando os conflitos inerentes à ação política?
Não é que ele escamoteia. Ele impede a possibilidade da emergência dos conflitos. Se você diz que os direitos humanos são uma verdade incontestável, você não pode contestar, por exemplo, a noção de propriedade do direito fundamental. A igualdade, a liberdade são princípios abstratos. Quando você coloca no plano prático, se não há liberdade, nós temos de fazer à força que ele seja efetivada. O que temos de fazer, então? Fazer o mesmo que propunha Robespierre. Quando você olha o terror revolucionário francês, qual era a expressão que ele usava para o terror revolucionário, que levou muita gente para a guilhotina? Esse momento é o momento de despotismo da liberdade. É a contradição em termos. É fazer com que a liberdade venha do céu à terra e se realize a qualquer custo. É um paradoxo, um massacre, uma camisa-de-força sobre a verdade política tal qual ela é. Você pode pensar os direitos humanos como se não fossem verdades absolutas. Mas se eles forem tomados como verdades incontestáveis, eles impedem qualquer ação política e democrática no lugar da atuação das diferenças, dos conflitos, dos interesses antagônicos até. Mas se forem pensados de outra maneira, não. É aí que você poderia ter uma outra visão dos direitos humanos, como algo a construir, não muito bem delimitado, definido. Mas com essa conotação, uma verdade absoluta, é impossível.
Não seria o caso de falar antes em direitos do
cidadão do que propriamente em direitos humanos?
Exatamente. Quando você tem uma série de infrações aos direitos fundamentais, civis, as pessoas vão dizer que são um atentado aos direitos. Não são atentados aos direitos humanos. São atentados às leis em vigor. Nesse produto de desrespeito à ordem judiciária, são simplesmente uma questão de de infração às leis. Então, que se apliquem as leis. Não precisa estar o tempo todo recorrendo a direitos humanos. É uma espécie de recurso sem fundamento algum, sobretudo porque não tem eficácia. É apenas uma espécie de consolo dos aflitos, porque não se efetiva. Por exemplo, você tem direito ao trabalho, à educação, à saúde, mas na prática nada disso acontece. Você tem direito ao trabalho, mas não tem trabalho e vai haver cada vez menos devido à automação. Então, para que ficar dizendo que existe direito ao trabalho?
Então o senhor concorda com a perspectiva de Hannah
Arendt quando ela fala que os direitos humanos, no caso,
por exemplo, das catástrofes totalitárias do século 20,
acabaram sendo o último recurso das massas abandonadas?
Exatamente. Uma expressão que ela usa é que os direitos humanos se aplicam a quem não tem direito algum. Quando o indivíduo perde todo direito, como os refugiados, os apátridas, aparecem então como única tábua de salvação os direitos humanos. É por isso também que os direitos humanos serão o direito de todos os excluídos. Nos próprios Estados democráticos vigentes, sempre quando se refere aos direitos humanos, é pensando nos excluídos. Sem-teto, sem-terra, prisioneiros, aqueles que estão fora do Estado de direito, são aqueles indivíduos que são objetos da ação humanitária.
Mas o senhor reconhece que na história o
discurso dos direitos humanos conseguiu
algumas conquistas em termos de direitos sociais.
Certamente houve. Mas elas aparecem muito mais quando há momentos de opressão. Aí as vítimas dos regimes totalitários é que apelam aos direitos humanos. E as organizações humanitárias vão de certo modo atender àqueles que estão sofrendo opressões em seus Estados, ou estão sendo expatriados. Então, quando é que o discurso dos direitos humanos funciona? É quando há perda de direitos.
Já se comentou que a Declaração Universal dos Direitos
Humanos é uma criação do Ocidente. Essa pretensão de
universalização, de certa forma, não serviu como arma
para o Ocidente impor sua maneira de ver para outros povos?
Sempre foi. Todo processo de expansão territorial sempre vem acompanhado também dessa maneira pretensamente universal que deve ser tacitamente aceita por todos. Se alguns povos não têm, é levado a eles como se fosse um processo de colonização. Então, é claro, você vai passar por cima das culturas e não vai respeitar diferenças, porque considera que são direitos tacitamente aceitos. Os direitos humanos são hoje esvaziados de sentido porque assumem sentidos para cada território diferente. Se você perguntar o que são direitos humanos para Bush, ele tem uma concepção. O que são para um iraquiano, para um iraniano, são coisas completamente diferentes. Os direitos humanos têm uma pretensão de universalidade, mas não são universais.
Marx faz uma crítica feroz ao conceito de direitos humanos, segundo
a qual eles são na verdade os direitos do homem burguês. Em que
ponto ele acertou e onde ele errou nessa crítica, se é que errou?
Considero a crítica que Marx faz aos direitos humanos bastante pertinente. O que é mais interessante na crítica é mostrar que esses direitos são de um homem abstrato. E essa abstração nos coloca numa duplicidade que é a pretensão de universalidade desses direitos humanos, que não se concretiza. E, no entanto, coloca os indivíduos na possibilidade de vir a conquistá-los, como se fosse uma miragem. Os direitos humanos, se pensarmos depois da crítica que Marx fez na Questão Judaica, são ficção. Como você pode imaginar que trabalho é um direito? Como pode imaginar que propriedade é um direito? Que tipo de propriedade? Aí você vê a ambigüidade. Se a propriedade for a da minha própria pele, sou propriedade de mim mesmo. Mas para ser proprietário de bens eu teria de trabalhar. E aí existe o direito humano ao trabalho. Se não há trabalho, como posso adquirir propriedade pelo trabalho? Se a educação é um direito fundamental, por que não tenho acesso a ela? A saúde também. Se precisar de um hospital, terei condições de um bom atendimento?
Então os direitos humanos acabam sendo um conceito vazio?
Exatamente. Como ele tem esse caráter abstrato, você preenche como quer. Não só preenche como quer, como ele é utilizado com freqüência para o jogo político-ideológico. Ele é usado com muita freqüência no momento de campanhas eleitorais. Vamos ajudar todos, ter educação de qualidade para todos, vamos ter saúde. Tudo aquilo que é bandeira dos direitos humanos, é acionado para voto. Claro que nada disso vai se realizar, porque é impossível a realização de tudo isso, no entanto ele mobiliza, proporciona votos nas campanhas porque afinal de contas toca as pessoas. O que de certo modo corrobora aquela minha expressão anterior de que direitos humanos e democracia não combinam porque se você aciona para valer, se fossem para valer os direitos humanos, teria de se recorrer à força. Não temos propriedade, vamos invadir a propriedade dos outros, porque a propriedade é uma metáfora. A vida é um direito. Precisamos comer, estou com fome, vou ter de roubar para me alimentar. Tdo isso indica um descompasso entre aquilo que se considera Estado de direito regulamentado pelas leis e o que está fora desse espaço e que, quando ingressa nele, faz isso de forma violenta.
O senhor se mostra crítico em relação às
organizações não-governamentais (ONGs). Por quê?
Sou crítico ao papel das ONGs, tanto quanto ao papel do Estado, quando ele toma decisões de caráter assistencialista. Pelo seguinte: o governo chama de política social oferecer simplesmente assistência social em vez de lidar com o núcleo do problema. E as ONGs trabalham no mundo da exclusão. Cada vez mais elas aparecem porque cada vez mais há excluídos. O Estado cada vez mais se exime da sua responsabilidade de atuar. As ONGs são um sintoma de que ingressamos para valer na era dos direitos humanos. Ingressamos na era dos excluídos, das pessoas que não têm direito algum, que precisam das ações assistenciais.
Que garantem o mínimo da sobrevivência, mas não a cidadania...
São cidadãos de segunda classe. Não têm trabalho, saúde, mas estão se alimentando.
Isso seria sinal da falência do Estado?
Exato. As conseqüências são imprevisíveis, porque você não sabe até que ponto isso não cria uma sociedade paralela, um outro mundo, totalmente diferente.
Como essa questão dos direitos humanos se situa hoje
no debate filosófico? A filosofia contemporânea tem conseguido
perceber essas contradições no discurso dos direitos humanos?
Com bastante atraso. Porque a questão dos direitos humanos sempre foi colocada como um dado aceito por todos. Algo que não se contestava. Essas questões têm sido percebidas sobretudo pelo italiano Giorgio Agamben, que pensa um pouco nessa linha de que temos de abandonar essa idéia dos direitos humanos. Ele diz que todas as reivindicações sempre se fizeram em nome de algum tipo de direito. As mulheres, minorias. Só que o resultado final é uma inflação de direitos, que afinal de contas se anulam. Se você reivindicar o direito de ser diferente, na particularidade de cada um, e que o Estado deve contemplar tudo aquilo que vem das reivindicações do indivíduo, no final das contas teremos um Estado totalitário, com ausência total de liberdade. Só que as pessoas não pensam assim. Se sou diferente, tenho uma peculiaridade tal, quero que o Estado me veja como diferente. Se pensássemos assim, não haveria nem mais o direito à intimidade. Se peço segurança, que é o que todos queremos, o que é segurança se não colocar uma câmera em cada esquina, em todos os lugares, todas as ruas? Não haveria nenhum lugar em que você pudesse ficar sozinho e seria como o Big Brother.
"Certamente houve algumas conquistas. Mas elas
aparecem muito mais quando você tem momentos de opressão”
"O mais interessante na crítica de Marx é mostrar
que os direitos humanos são de um homem abstrato”