Porque sou contra o vestibular

Portal Andifes, 01/10/2007

Porque sou contra o vestibular

Naomar de Almeida Filho, Reitor da UFBA

Devo declarar de pronto. Sou contra o vestibular como forma de seleção de candidatos às universidades. Justifico essa posição porque considero o exame vestibular como irracional, pois se funda em pelo menos duas falácias: a democrática e a meritocrática.

Em primeiro lugar, vejamos a falácia democrática, defendida pelas classes sociais até o momento beneficiadas pelo sistema.

Dizem, os formuladores dessa falácia, que o exame vestibular é um concurso público, transparente e democrático. Aqueles que demonstrarem inteligência, competência e qualificação, pobres ou ricos, terão igual oportunidade em um mesmo e único teste, aberto a todos os que nele se inscreverem. Indicadores de avaliação disponíveis demonstram que, no Brasil, melhor qualidade de educação superior encontra-se em instituições públicas, que não cobram mensalidades ou taxas. Entretanto, na universidade pública, em carreiras profissionais de maior retorno econômico e prestígio social, entram predominantemente aqueles que têm recursos financeiros e apoio familiar (ou seja, origem de classe social) que garantem acesso à educação básica de maior qualidade e a processos preparatórios eficientes para o sucesso no rigoroso filtro competitivo de seleção para essas instituições.

Ora, longe de significar garantia do princípio republicano de igualdade de oportunidades mediante concurso único, público e aberto, o exame vestibular contribui à perpetuação do viés elitista e essencialmente conservador da universidade. Sua manutenção e aperfeiçoamento consolidam, a cada ano, a perversão social e política da educação superior brasileira. Por sua obviedade, esta questão não merece maior detalhamento analítico e sim efetividade na implantação de mecanismos e estratégias capazes de, emergencialmente, minimizar os seus efeitos políticos.

Em segundo lugar, consideremos a falácia meritocrática, justificativa preferida pela oligarquia acadêmica que preserva o elitismo da universidade brasileira.

Para os defensores dessa posição, o exame vestibular é um teste de conhecimento neutro e eficiente, capaz de selecionar, pelo mérito, os melhores candidatos a entrar nas universidades, privadas ou públicas. Por isso, formas alternativas de processo seletivo ou programas de ações afirmativas que ampliam o acesso à universidade são consideradas uma ameaça à qualidade da educação superior. Penso justamente o contrário. Para mim, o vestibular unificado revela-se um rotundo fracasso como identificador de competências e aptidões dos candidatos à formação universitária e como método de reconhecimento de inteligências. Dito de outra maneira, o vestibular implica um processo seletivo que, a despeito da sua aparência de competição intelectual, na verdade não respeita o primado do mérito acadêmico como critério de seleção de candidatos. Este argumento, por ser contra-intuitivo, exige maior consideração.

Na primeira metade do século passado, pensava-se que a inteligência era atributo unívoco e dimensional, exclusivo dos seres humanos. Por sua natureza, a inteligência compunha um construto que poderia ser medido do mesmo modo como se quantifica temperatura corporal, peso ou estatura. A partir da década de 1930, inúmeros testes para avaliar inteligência foram criados e aperfeiçoados, compondo uma medida que ganhou notoriedade, o Quociente de Inteligência – QI. Nesse contexto, concepções eugenistas e racistas com freqüência se baseavam em instrumentos psicométricos para demonstrar suposta inferioridade intelectual de raças e etnias.

Na onda do multiculturalismo dos anos 1990, Howard Gardner, professor de Psicologia da Harvard University, sistematizou o conceito de inteligências múltiplas. Aplicando os mesmos critérios lógicos e teóricos que subsidiavam a noção de inteligência como capacidade de resolver problemas formais a partir de informações memorizadas, se aplicados às numerosas capacidades cognitivas humanas, Gardner identificou oito tipos de inteligência: lógica, lingüística, espacial, musical, corporal, naturalista, subjetiva, interpessoal. Dessas, apenas as duas primeiras seriam avaliáveis por meio de testes de QI ou outras medidas baseadas em memorização e desempenho intelectual. As inteligências interpessoal e intrapessoal (ou subjetiva), com o apelido de “inteligência emocional”, posteriormente tornaram-se populares na subliteratura de auto-ajuda.

Apliquemos o conceito de inteligências múltiplas ao problema da validade dos processos seletivos atualmente vigentes na universidade brasileira. Com inspiração livre na proposta gardneriana, consideremos as seguintes modalidades de inteligência, renomeando-as com a devida “licença poética”:

  • Inteligência competitiva
  • Inteligência processual
  • Inteligência emocional
  • Inteligência solidária
  • Inteligência criativa

A inteligência competitiva compreende capacidade de resposta rápida, através de memorização seletiva e temporária de conteúdos ou fragmentos de conhecimento, além de alto desempenho instantâneo em momentos de tensão. Alguns sujeitos capazes de alto rendimento cognitivo conseguem dar o melhor de si em situações extremas e agudas de teste; poderíamos chamá-los de “atletas intelectuais”. Em contraste, a inteligência processual refere-se à capacidade de dar respostas de modo consistente, regular e gradualista, portanto com baixa velocidade. Nesse caso, a memorização constitui requisito importante, mas secundário, pois processos alongados permitem apreensão incremental de informações. A inteligência emocional introduz motivação e investimento subjetivo no desempenho individual com vistas à produção de soluções e resultados. Alguns desses sujeitos se envolvem de modo tão profundo com seus objetivos pessoais que, paradoxalmente, seu desempenho em processos seletivos torna-se seriamente comprometido pela tensão emocional.

A inteligência solidária refere-se ao desempenho no trabalho em equipe, onde participação, empatia e generosidade indicam valores indispensáveis ao alcance dos resultados do trabalho grupal. De fato, alguns sujeitos amplificam seu rendimento em testes ou processos de produção de soluções quando trabalham junto com outros e não contra eles. A inteligência criativa significa a capacidade de descobrir, de modo intuitivo, soluções novas ou emergentes, não determinadas ou conectadas com parâmetros e critérios conhecidos. Procedimentos convencionais de testagem, estruturados, pré-fixados, pontuais ou com prazo definido, são inúteis para a prospecção desse tipo de inteligência, porque soluções criativas resultam de invenção e não de pensamento sintético ou analítico.

O que é, objetivamente, o atual exame vestibular? Trata-se de um teste estruturado ou semi-estruturado de avaliação do desempenho cognitivo, individual, aplicado pontualmente, em uma ou duas etapas, de modo concentrado, com duração total de 1 a 3 dias. Tem como objetivo a seleção de candidatos a estudos superiores para formação acadêmica ou profissional e, na maior parte das instituições universitárias, exige a escolha prévia da carreira profissional com vistas a regular a competitividade diferencial entre os respectivos cursos ou programas de formação.  Por ser unificado, inclui questões de caráter geral que, para sua solução, necessita-se mais capacidade de memorização e menos raciocínio analítico.

Eis um grande paradoxo! Como pode um mesmo instrumento, geral e unificado, ser realmente eficiente para a seleção de alunos para carreiras profissionais tão específicas, que exigem competências e aptidões diferenciadas como educação física e direito, medicina e engenharia de minas, dança e história, veterinária e letras? Não seria lógico que distintos cursos empregassem modelos diversificados de processo seletivo mais adequados às diferentes inteligências, vinculadas às competências e aptidões de cada uma das carreiras profissionais e formações acadêmicas? Antes da Reforma de 1968, os exames vestibulares eram específicos por curso e variavam bastante em termos de metodologia; mesmo hoje, no nível de pós-graduação, cada programa realiza, de modo plenamente diversificado, seus processos seletivos.

Do ponto de vista da teoria das múltiplas inteligências, encontro impressionante lacuna lógica nos processos seletivos baseados no vestibular unificado. De fato, apenas a inteligência lógico-lingüística (na tipologia de Gardner) dos “atletas intelectuais” poderia ser, com restrições, testada no modelo vigente. Por ser uma avaliação pontual, o exame vestibular não avalia inteligência processual. Por ser pontual e competitivo, o que o torna gerador de intensa tensão psicológica, exclui candidatos com alta inteligência emocional. Por ser pontual, competitivo e individualista, não identifica sujeitos capazes de melhor desempenho com base na inteligência solidária. Por ser pontual, competitivo, individualista e baseado em memorização seletiva e pré-fixada, mostra-se incapaz de reconhecer a inteligência criativa, nos momentos em que ela se realiza.

Ao empregar processos seletivos tão empobrecidos por uma única modalidade de aferição e tão enviesados do ponto de vista de conteúdos, a universidade brasileira encontra-se fadada a compor seu corpo discente apenas com sujeitos portadores de inteligência competitiva, particularmente naqueles cursos de maior procura. Quantas inteligências, que precisam de estabilidade temporal para se manifestar, têm sido perdidas pela universidade por não se terem mostrado capazes de rendimento instantâneo, concentrado em um único teste? Quantas inteligências agregadoras e solidárias têm sido desprezadas por sistemas de seleção valorizadores do desempenho individual e solitário? Quantas sensibilidades criativas têm sido excluídas da formação universitária por não terem demonstrado desempenho em testes estressantes baseados em lógica e memorização?

Muitos dos problemas e impasses da universidade pública brasileira atual, em especial sua elevadíssima taxa de evasão, podem estar sendo determinados por um sistema irracional de seleção de novos alunos. Em conseqüência, várias questões críticas pertinentes ao perfil dos egressos certamente constituem reflexo desse importante momento inicial de composição do alunado. Depois de usar processos seletivos distorcidos por uma perspectiva tão individualizadora quanto elitista, que termina por concentrar sujeitos selecionados justamente por preencher tal perfil, principalmente nos cursos de maior procura, não faz o menor sentido alguém se queixar de que os futuros profissionais estão saindo da universidade excessivamente competitivos, egoístas, acríticos, insensíveis e socialmente irresponsáveis. O problema, em suma, pode não ser a saída, mas sim a entrada dos alunos na universidade. O sistema de regulação do acesso à educação superior, atualmente vigente na maioria das instituições universitárias brasileiras, os têm selecionado justamente por serem já portadores desses atributos.

Assim, o vestibular unificado, introduzido por uma Reforma Universitária imposta pelo regime militar em cumprimento ao Acordo MEC-USAID, constitui poderoso instrumento de exclusão social e reprodução de desigualdades econômicas e sociais e em nada contribui para o cumprimento da função acadêmica da universidade. É chegado o momento de reparar e superar um problema estrutural de tal monta que, por seus efeitos nocivos, muito tem contribuído para manter a educação superior nacional sob enorme atraso histórico. Precisamos implantar, nas universidades brasileiras, em especial no setor público, procedimentos seletivos diversificados, flexíveis, processuais, criativos e multi-referenciados, realmente democráticos e de fato meritocráticos, capazes de estancar o enorme desperdício de inteligências que a nossa arcaica instituição universitária tem perpetrado ao longo dos anos.