O carro e o futuro da urbe

Jornal O Popular, 23/10/2007

O carro e o futuro da urbe

Virmondes Cruvinel Filho

Ano em que se realizará a mais ampla licitação da história do sistema de transporte coletivo de Goiânia, ao mesmo tempo em que o governo municipal decide investir em grandes obras visando melhorar a infra-estrutura viária, 2007 começa a despontar como um marco para o urbanismo na capital. Confirmando a tradição de planejamento da cidade, a sociedade goianiense deveria aproveitar melhor este momento especial para discutir que tipo de metrópole espera legar às próximas gerações.

Em todas as grandes cidades, o debate sobre o transporte tornou-se um dos mais acalorados desde o boom industrial do pós-guerra (a partir dos anos 50). Esse desenvolvimento propiciou a dramática urbanização de vários países (inclusive o Brasil), trazendo consigo a popularização do uso do automóvel. Prestigiar a utilização do carro pessoal ou dar prioridade ao transporte coletivo passou a ser o maior dilema para muitas metrópoles, cujas administrações são obrigadas a desenvolver políticas para adequar a nova situação urbana às necessidades de mobilidade de seus habitantes.

O uso do carro é imprescindível, mas há nuances na forma com que cada civilização o aceita em suas cidades. Se nos Estados Unidos o way of life e as pressões da indústria automobilística privilegiaram o uso individual do carro, na Europa foi diferente. Por abrigar uma urbanização mais antiga e pelas reconstruções provocadas pelas guerras, a maioria das grandes cidades européias continua investindo na melhoria de seus sistemas de transporte coletivo. No Japão surgiu um modelo híbrido: o prazer de dirigir sempre foi estimulado pela indústria (a mais arrojada do mundo), fazendo com que a utilização da excelente infra-estrutura de transporte comum venha caindo paulatinamente desde os anos 90.

É claro que essas são generalizações, pois nenhum país investe mais em transporte coletivo do que os Estados Unidos -– cerca de US$ 35 bilhões anuais somente em subsídios para as empresas que transportam passageiros (dados de 2005). Mesmo que esse montante represente muito pouco diante do PIB norte-americano (US$ 11,2 trilhões em 2005), basta lembrar que o PAC brasileiro (cujo relatório oficial já admite atraso em boa parte dos investimentos) previa a aplicação de cerca de US$ 62 bilhões anuais em todos os tipos de infra-estrutura. Sem contar que as inversões diretas em transporte coletivo podem ser consideradas marginais no PAC.

Além de estar no centro da questão da mobilidade nas grandes cidades, o uso pessoal do carro ganhou novas frentes de discussão com a premência do debate sobre o aquecimento global -– causado pela emissão excessiva de gás carbônico na atmosfera. Para ambientalistas, as metrópoles que não investem em sistemas de transporte coletivo navegam contra a sustentabilidade energética e contra a qualidade de vida de seus habitantes. O custo energético por passageiro é, em média, sete vezes mais baixo no transporte coletivo do que no carro individual.

Mesmo sendo poluidor e entrave à fluência do trânsito nas metrópoles, o automóvel não precisa ser demonizado. Contudo, nas cidades em que problemas mais graves ainda se encontram em estágio embrionário (como é o caso de Goiânia, ocupada por mais de 600 mil veículos), é necessária uma revisão crítica sobre as políticas públicas e o comportamento dos motoristas. Um bom exemplo da conduta que se espera da sociedade foi a reportagem (O POPULAR, 6/9/2007) na qual urbanistas questionam a importância de obras como a trincheira na Praça do Ratinho (já quase concluída), a do elevado no cruzamento das Avenidas 85 e T-63 (com licitação marcada para os próximos dias) e a do viaduto na BR-153 (em frente à Unip).

Os especialistas dizem que essas obras são paliativas e privilegiam o uso do carro, alertando que a Prefeitura deveria investir mais em transporte coletivo. É um ótimo momento para essa discussão. Depois de quatro décadas de planejamento dependente das empresas concessionárias, a licitação do sistema de transporte coletivo se apresenta como oportunidade única para a participação do poder público e da sociedade nesse debate. O processo é conduzido pela Câmara Deliberativa do Transporte Coletivo (CDTC), que, infelizmente, não está aberta nem mesmo à participação dos vereadores. É preciso vigilância da mídia e da sociedade para que o sistema desenhado na licitação ofereça respostas a esses questionamentos.

Virmondes Cruvinel Filho é professor de Direito Constitucional (UFG) e vereador pelo PSDC