Relembrar é preciso, por Lena Castello Branco

Jornal Diário da Manhã, 23/10/2007

Relembrar é preciso, por Lena Castello Branco

 

Quando se preparavam as comemorações do centenário da Independência, chefes de Estado foram convidados. Um deles – o rei Alberto I, da Bélgica – confirmou presença e fez saber que lhe seria grato receber o título de doutor “honoris causa” da mais renomada universidade do País.
A comissão organizadora dos festejos viu-se em dificuldades: como atender ao pleito se não havia universidade desse tipo no Brasil? Modestas instituições estaduais tinham sido criadas recentemente e ensaiavam os primeiros passos; por seu caráter provinciano, todavia, não estavam à altura do “status” do visitante ilustre.
Na então capital da República, conceituadas faculdades isoladas desde muito formavam profissionais nas áreas de Medicina, Engenharia e Direito: a solução para o impasse foi reuni-las na Universidade do Rio de Janeiro, assim criada por decreto do governo federal.
Reporto-me ao episódio para lembrar que, em relação ao ensino superior, têm prevalecido o açodamento e a improvisação. Vivi a Reforma Universitária de 1968, que trouxe importantes mudanças, dentre as quais a extinção das cátedras, herdadas do velho sistema coimbrão e substituídas pelos departamentos, como unidades básicas de ensino e pesquisa. Criaram-se também os cursos de pós-graduação “stricto sensu”, o que fez deslanchar a pesquisa científica, até então praticamente inexistente.
Nem tudo deu certo, porém. Os cursos de graduação passaram a ter um 1º ciclo geral de estudos – algo parecido com os “colleges” da tradição anglo-saxônica. A idéia era a de ensejar maior embasamento e amadurecimento aos jovens que ingressavam na universidade, muitos dos quais imaturos para definir o próprio futuro. Ademais, as disciplinas programadas, de caráter propedêutico, assegurariam aos estudantes melhor nível de aproveitamento nos estudos. Finalmente, a seleção dos mais aptos deixava de ser feita em um único momento – o do vestibular – e passava a ocorrer ao longo de um processo, com a duração de alguns semestres.
Na prática, o vestibulando fazia opção por uma carreira – Medicina, por exemplo – e assinalava sua segunda e terceira opção, na mesma área: Odontologia, Enfermagem, Farmácia etc. Concluído o 1º ciclo, sua média final confirmaria a escolha inicial ou iria reclassificá-lo para outro curso, na ordem da preferência externada.
Ao ser anunciada a Reforma Universitária, foram prometidos recursos orçamentários e apoio integral do Ministério da Educação e Cultura. Começava, então, o chamado “milagre brasileiro”, com elevadas taxas de crescimento econômico, o que poderia ter viabilizado o atendimento às reivindicações dos dirigentes de unidades universitárias, com vistas ao sucesso do empreendimento. Tal não aconteceu, por motivos que desconheço: simples incompetência? desavenças entre os governantes? acordos internacionais não divulgados? Das universidades foi exigido, entretanto, que dessem cumprimento imediato à Reforma anunciada.
Na UFG, ao antigo ICHL caberia ministrar as disciplinas das áreas de Ciências Humanas e de Letras, no 1º ciclo geral de estudos. Coube-nos atender a centenas de alunos de praticamente todos os cursos, que se matricularam em Língua Portuguesa; e, de modo similar, em Introdução à Filosofia, Metodologia do Trabalho Intelectual e Sociologia.
Foi uma loucura. Pedimos a contratação de professores capacitados, em número suficiente, mas não fomos atendidos, senão lenta e parcialmente: argumentava-se que os docentes em exercício tinham carga horária “reduzida” e deveriam trabalhar mais. Reivindicamos, sem sucesso, a ampliação do espaço físico, bem como a alocação de recursos para a compra de materiais, equipamentos, livros etc.
Os docentes passaram, de fato, a ministrar maior número de horas/aula, sendo enorme a resistência dos setores competentes (?) ao pagamento de horas-extras. Como diretora do ICHL, brigamos inutilmente no Conselho Universitário por mais verbas e melhores condições de trabalho. Instalado o impasse, apelamos para o que era possível fazer: consertar carteiras, criar classes noturnas, pedir salas, mesas, cadeiras e professores emprestados a outras unidades.
E as aulas começaram. Das 7 da manhã em diante, as salas – com turmas enormes – ficavam literalmente cheias de estudantes atentos, cientes de que continuavam competindo pela matrícula nos cursos que desejavam. Vigilantes, exerciam o direito de reclamar: pediam a substituição dos professores que julgavam ineficientes e exigiam o rígido cumprimento dos horários.
Ao serem reclassificados para outros cursos, de acordo com médias obtidas no 1º ciclo de estudos, muitos alunos recorreram à Justiça e asseguraram a prevalência da classificação obtida no vestibular. Diante da enorme confusão que se estabeleceu – com protestos e confrontos em todo o País –, a “experiência” foi abandonada.
Anuncia-se, agora, que as universidades federais irão ampliar o número de cursos e de matrículas – e que disporão de milhões de reais para esse fim. Na UFG, fala-se na contratação de centenas de professores e funcionários, na criação de cursos inovadores (?), na construção de novos prédios e assim por diante. É o PAC da Educação!
Fico a relembrar o fracasso do 1º ciclo geral de estudos, o inútil esforço despendido por muitos de nós, em prol de patamares qualitativos mais altos de ensino na universidade brasileira. E como tudo se frustrou, na esteira da improvisação e da pressa...
Ou será que, agora, o que verdadeiramente se tem em mira são as estatísticas, com o objetivo de se proclamar – em 2010 – que “nunca antes na história deste País– cresceram tanto as matrículas no ensino público de nível superior?