Bota o meu no seu que eu boto o seu no meu

Jornal O Popular, 30/10/2007

Bota o meu no seu que eu boto o seu no meu

Flávio Paranhos

O problema é antiqüíssimo e só vem piorando. Já discutimos aqui (A pós-graduação e a mais-valia, O POPULAR, 27/7/2001) o mal que fazem as políticas educacionais que premiam com dinheiro (gratificações salariais, bolsas, financiamentos) a titulação acadêmica e produção científica publicada. Isso sem falar na titulação como forma de marketing pessoal, uma aberração moderna. Doutor vale mais do que mestre, que vale mais do que especialista, que vale mais do que graduado. Dez trabalhos publicados nos últimos três anos valem mais do que cinco, mas valem menos do que um publicado em revista de alto impacto (muito citada).

O resultado disso é, como já dissemos, pessoas sem qualquer dom pra pesquisa forçando a própria natureza para se tornarem pesquisadores. Sim, pesquisar (como lecionar) pressupõe dom. Imaginem um decreto determinando que todo professor, pra ascender na carreira, teria de aprender a tocar violino. Um desastre. Pra cada Paganini, 50 Bolinhas (se a memória não me trai, o Bolinha da Luluzinha tocava pessimamente). Um enorme desserviço pra música. Por outro lado, os Bolinhas não têm por que se envergonhar de tocar mal. Dom é coisa inata. Ou se tem, ou não se tem.

É preciso desmistificar a titulação e a produção científica. Começando pela falácia de que é preciso produzir pra se manter atualizado. Nada mais equivocado. Ter uma linha de pesquisa regular significa superespecializar-se, o que é o contrário de manter-se atualizado. Para tanto é preciso, sim, consumir pesquisa, e, não, produzir. Ter acesso livre às revistas científicas. E as ler.

A ganância por produção a qualquer custo, além de ser responsável por vomitar montanhas de trabalhos redundantes e/ou de qualidade questionável na info highway, também responde cada vez mais freqüentemente pelo crime de fraude científica. A variante da lei de Gerson “bota meu nome no seu que eu boto o seu no meu” é aplicada sem pudor. Tem também a “bota meu nome aí porque eu sou o chefe do departamento”.

Do que os espertinhos e espertões se esquecem, entretanto, é que co-autor também é co-responsável. Legalmente, inclusive. Pode acontecer com ele o que aconteceu com o professor Geoffrey Chamberlain, chefe do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia do St. George’s Hospital, em Londres, que deixou seu colega Malcolm Pearce botar o seu no dele. Malandrinho, dr. Pearce mentiu que fez uma cirurgia milagrosa numa paciente fictícia. Chamberlain, até então respeitado entre os pares, caiu na poça de lama junto com Pearce (British Medical Journal, junho de 1995).

A autoria de um trabalho científico tem de obedecer a três critérios (todos eles): 1) dar contribuições substanciais para sua concepção e projeto, ou aquisição de dados, ou análise e interpretação de dados; 2) escrever ou revisar criticamente; 3) aprovar a versão final (International Committee of Medical Journals, 2007). Ignorar essas normas não é só muito feio. É desonesto.

Flávio Paranhos é médico, doutor (UFMG) e postdoc fellow (Harvard) em Oftalmologia, mestre (UFG) e doutorando (UFSCar) em Filosofia, membro do Comitê de Ética em Pesquisa do HC-UFG