Entrevista: André Barcellos

Jornal Tribuna do Planalto, 01/11/2007

Entrevista: André Barcellos

Maria Cristina Furtado

Uma programação especial para as crianças teve espaço garantido mais uma vez no festival "Goiânia Mostra Curtas", realizado de 9 a 14 de outubro em Goiânia. Trata-se da "6ª Mostrinha", que exibiu oito filmes selecionados com temáticas do mundo infantil. Dentre elas podemos destacar os relacionamentos no mundo de hoje, folclore, problemas sociais, entre outras, tanto em película quanto em animação. Com um olhar cuidadoso voltado para o diferente e para a qualidade das produções, o curador da Mostrinha, André Barcellos, assistiu, por diversas vezes, aos filmes inscritos. Professor de "Produção Cultural para Crianças" e "Educação, Comunicação e Mídias" na Universidade Federal de Goiás (UFG), Barcellos é o responsável pela seleção das produções exibidas na mostra pelo terceiro ano consecutivo. Em entrevista ao suplemento Escola, ele falou sobre os critérios de escolha, a função do espetáculo, os valores da arte aplicados em sala de aula, além dos filmes apresentados este ano.

Como curador da Mostrinha, qual o critério que o senhor adotou na seleção dos filmes?
O meu olhar é o olhar de um adulto. Antes de tudo, eu sou um espectador. Por isso eu vejo cinco vezes o mesmo filme. Agradando ou não, vou vê-lo de novo. Esse é o compromisso: distanciar do espectador e construir um outro olhar. Em relação à seleção, pós esses olhares, eu faço uma avaliação primeiro da diversidade. Os selecionados não devem ser os filmes comuns, aqueles com uma linguagem cinematográfica já conhecida. Eu trato cada filme como uma obra única. Tenho preconceito em relação àquele filme que parece que a história já foi contada, que o jeito de filmar não tem inovação. Tento valorizar mais a originalidade da fotografia, do texto, das interpretações. O critério seguinte é a qualidade, em que imperam valores absolutamente subjetivos, que são meus. Por exemplo, a visão que se tem no filme de uma criança. Eu tenho uma visão particular do que é uma criança, ela não é burra, não é boba, ela entende elipses de roteiro, filmagens oblíquas. O conceito presente de criança, não só do ponto de vista da dramaturgia, mas também da criança que é pensada como espectadora.

E o que é levado em conta?
Eu não acho que uma criança tenha de ser independente. Toda essa escola do "Esqueceram de Mim", da visão norte-americana. No século 17 você não tinha a idéia de criança. A partir do século 18 você tem uma produção própria de brinquedos, de livros, de roupas, de comportamentos. A Educação se revoluciona assim, quando começa a se perceber que o universo infantil é distinto do adulto. É isso que eu tento mostrar no meu trabalho e na "Mostrinha". Selecionar filmes que busquem formar a criança para que ela seja um adulto crítico. Eu não posso simplificar a dramaturgia, a linguagem cinematográfica para que a criança tenha condições de compreender. Ao contrário, eu tenho que estimulá-la para que ela aprenda cada vez mais.

Duas manhãs da Mostrinhas são dedicadas às escolas da rede estadual e municipal. De que forma o professor pode aplicar em sala de aula o que foi visto na "Mostrinha"?
Essa é uma dificuldade. O "Goiânia Mostra Curtas" tem o compromisso de exibir filmes de boa qualidade para as crianças. Todo o desdobramento não é de responsabilidade do evento. Por isso que eu acho que a mostra é um espetáculo e não acredito que seja possível educar a partir dos espetáculos. Ele é um evento efêmero que, juntamente com outros eventos efêmeros, vai constituir a formação de uma criança. Os espetáculos na vida de uma criança não são determinantes. Para você determinar uma formação, seja da criança ou do adulto, é a consistência e cotidianidade dos eventos. A "Mostrinha" não é uma iniciativa para formar público.

E para o adulto, a mostra forma público?
Na perspectiva do público interessado, profissional do audiovisual, vai sim. Mas o público espectador, acho que não. Para isso acontecer seria preciso uma política pública. Se o fato é projeção de cinema nacional de curta-metragem, necessariamente você tem de ter instituições para fazer formação mesmo de público. Seriam vários eventos, discussões, seminários ao longo do ano. Uma vez ao ano não se consegue fazer isso. A sociedade do espetáculo é a sociedade do grande, do maravilhoso, do enorme. Não se forma pessoas a partir do espetáculo, mas também não se pode prescindir do espetáculo para formar as pessoas. A questão da formação de público crítico, desse sujeito que aplaude ou vaia, do sujeito que levanta do cinema quando o filme é ruim, essa ainda vai ter de andar bastante. Eu gosto de um filme quando ele me surpreende, a cada tomada ele não pode ser óbvio. As pessoas geralmente saem de casa para se entreter, não para se divertir. Há uma distinção entre esses conceitos. Entreter, a origem vem de você se ater a alguma coisa, depois você vai se ater a outra coisa e entre esses dois momentos você se entreter. Isso pra mim é nada. Eu quero é me ater às coisas verdadeiramente e depois vou me ater a outras verdadeiramente. Eu não quero é me entreter.

Este ano a "Mostrinha" teve dois filmes que trataram do relacionamento na vida moderna: "Icarus" e "Na Corda Bamba". Essa é uma temática que o senhor considera que está presente na vida dessas crianças ou é uma tentativa de fomentar essa discussão entre a garotada?
Os filmes são selecionados e depois são organizados. Não tem uma lógica pra formação desses sete ou oito filmes que vão para "Mostrinha". Às vezes é um filme que me detona para escolher os outros. Pelos temas, eu faço questão de não ser um filme igual ao outro. A mostra também tem de retratar um pouco o meu critério de seleção, que é balancear animação com filme. Nosso público é variado, criança de 5, 6 anos de idade e até de 14 anos. Eu preciso fazer com que, em uma hora, todos gostem de todos os filmes. Não os escolho pelos temas. Seleciono de acordo com aqueles critérios de qualidade. Mesmo sendo uma ficção, ele me revela, explora-me, expõe-me a uma sociedade contraditória, não é uma sociedade cor-de-rosa ou ficcional. A questão do relacionamento está presente em todos eles porque é da obra humana.

A escolha do júri popular este ano ficou com "As Coisas que Moram nas Coisas", que fala de crianças que catam lixo junto com a família. O senhor concorda com esse resultado?
Acho que ele foi escolhido porque retrata um universo muito presente na vida das crianças que o viram. Nenhum dos outros filmes teve um apelo ficcional tão forte para as crianças se projetarem nele. Em 2005, o escolhido foi "Historietas Assombradas (para crianças malcriadas)". É um desenho animado com duas técnicas distintas e que fala de um universo do folclore brasileiro de muito boa qualidade. O "Icarus" é do mesmo autor e não foi escolhido porque é mais complexo. Certamente os meninos se encantaram com o desenho, mas não com a narrativa. Os produtos culturais necessariamente exigem uma mediação dos adultos em relação às crianças. A criança leva do espetáculo aquilo que ela compreendeu. A questão da consistência e do cotidiano na formação é justamente a mediação do adulto – seja ele professor, pai, tio –, em relação aquele objeto e não necessariamente um adulto esclarecido. Se você produz e promove encontros consistentes e cotidianos em relação ao objeto artístico, a uma produção cultural, a criança passa a demandar e demonstrar o valor que a obra tem.

Como professor, como o senhor poderia demonstrar esse valor aos seus alunos?
A disciplina que eu ofereço nas faculdades de Educação e de Comunicação e Biblioteconomia da UFG é produção cultural para crianças. Os formandos em Pedagogia pouco ou quase nada conhecem sobre isso. Sintetizo em quatro aulas as artes plásticas, apesar de ser quase impossível ver a História da Arte em apenas quatro aulas. Mas eu mostro mais para ganhar deles o valor. Exijo que eles visitem museus e galerias de arte numa tentativa de ver nascer ali o germe da inquietação artística, do gostar daquilo. São quatro aulas de literatura infantil, quatro aulas de televisão para criança e quatro aulas de cinema. Tudo em um semestre.