A cana e as previsões do beato Conselheiro
Jornal Diário da Manhã, 15/11/200
A cana e as previsões do beato Conselheiro
Dizia um certo Antônio Conselheiro, lá pelos lados de Canudos, na Bahia, que “o sertão vai virar mar, e o mar vai virar sertão”. Passaram os anos e a hidrelétrica de Sobradinho engoliu o arraial que sacudiu os primeiros anos da República. Corre-se o risco de em Goiás a profecia do beato se consumar como tragédia e o que era sertão se transforme em pó, visto que o risco é de uma certa monocultura consumir todos os rios, riachos, córregos e, quem sabe, até o Aqüífero Guarani, que jaz abaixo de nós.
Nos próximos anos a área plantada de cana-de-açúcar em Goiás deve saltar de 200 mil hectares (5% da área agricultável no Estado) para cerca de 400 mil hectares (10% do total). Os números são da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento) e mostram que o avanço da cultura, além de rápido, pode estar ocorrendo sem o devido acompanhamento das autoridades ligadas ao meio ambiente.
Em todo Estado pipocam denúncias de abusos cometidos pelos usineiros. No Vale do São Patrício, por exemplo, produtores de hortifrutigranjeiros reclamam que as usinas estão secando o Rio das Almas e pedem à Secretaria Estadual de Meio Ambiente que faça aferição da quantidade de água retirada do rio pelas lavouras de cana-de-açúcar. A situação é preocupante, pois o Rio das Almas é o principal manancial para captação d´água para cidades como Rianápolis, Ceres, Rialma, Nova Glória, Jardim Paulista, Ipiranga e outras.
Durante o II Fórum de Ciência e Tecnologia no Cerrado, a professora e pesquisadora Selma Simões (UFG -IESA) falou sobre os impactos ambientais do sistema sucroalcooleiro. Ela observou que em Goiás nos últimos anos, em especial desde 2005, o setor saltou de menos de 20 usinas para 34 em 2006 e atualmente para 74 confirmadas, além de mais 36 em cadastro ou análise, somando uma centena. Ocorre que esta expansão se dá, sobretudo, nas regiões onde se concentram as principais bacias hidrográficas do Estado, como as Microrregiões do Meia Ponte, Sudoeste Goiano e Vale do Rio dos Bois. Vale lembrar que estas bacias respondem por mais de 80% da captação d´água potável no Estado.
Produtores rurais em Uruana denunciam a pressão das usinas para o arrendo das terras. Um deles, que prefere não se identificar temendo represálias, diz que o setor sucroalcooleiro é mais predatório ao Cerrado do que foram os sojicultores. Cláudia Oliveira Rosa reforça a denúncia. Diretora técnica da área de cana-de-açúcar da Faeg (Federação da Agricultura do Estado de Goiás), ela disse, em entrevista ao jornal Gazeta Rural, órgão da Feago (Federação das Associações de Produtores Rurais do Estado de Goiás), que “quando iniciamos a discussão sobre a vinda da cana-de-açúcar para Goiás, as áreas destinadas seriam aquelas de pastagens degradadas. Hoje percebemos que as usinas estão sendo instaladas em terras próprias para a produção de grãos, sendo arrendadas, isto é preocupante”, frisa.
Segundo estudo feito pela Conab, o avanço da cana reduziu em 4% a área destinada a outros grãos no Estado. Os técnicos alertam que a monocultura leva ao esgotamento do solo, pois na maioria dos casos após a colheita a terra fica nua, sem cobertura, o que torna o solo empobrecido. Junta-se a isto a prática da queimada, que também contribui para o empobrecimento do solo.
Presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), Manoel dos Santos fez um alerta, durante audiência no Senado, de que a ampliação do setor sucroalcooleiro prejudica a agricultura familiar. “Onde chega uma plantação de cana, a agricultura familiar não pode se estabelecer ali em volta. Então, esses trabalhadores são expulsos ou pela pressão ou pela sedução de venda da terra, ou pelos herbicidas que são colocados, muitas vezes de avião, e prejudicam comunidades inteiras”, disse.
De acordo com o jornal Valor Econômico (28/09), “com terras mais baratas comparadas a São Paulo e também ao Triângulo Mineiro, Goiás tem recebido pesados aportes de usinas, se tornou atraente para os canaviais e já é considerado como nova fronteira para a cana. O Estado deve receber nos próximos cinco anos R$ 12 bilhões para a construção de usinas de açúcar e álcool. Mas já há resistências, sobretudo de municípios como Rio Verde, Jataí e Mineiros, onde estão instaladas integrações de aves e suínos e o avanço da cana já preocupa as empresas que temem que a oferta de grãos seja afetada. A Prefeitura de Rio Verde limitou a produção de cana para evitar um avanço da produção sobre os grãos. A cidade de Mineiros ameaça fazer o mesmo”.
Os números são alarmantes e levam a várias reflexões, uma delas é de que o avanço dos canaviais para Goiás é fruto da expansão do negócio que movimenta bilhões de dólares, portanto, não há que se colocar fermento num negócio que cresce naturalmente, conforme constata o Valor Econômico. Logo, para que dar incentivos fiscais aos usineiros? Para que abrir mão de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) se a rota natural do crescimento do setor sucroalcooleiro será em Goiás? Por que abrir mão de receita se a indústria da cana não tem áreas tão boas e logística tão ajustada quanto a de Goiás, que vai receber em breve o alcoolduto, ligando Senador Canedo a Paulínia (SP)? Mais ainda: por que abrir mão de fiscalizar e, principalmente, disciplinar o uso da terra e da água se temos na soja, que reduziu o Cerrado a menos de 20%, o exemplo do que pode acontecer com a biodiversidade e os manaciais hídricos do Estado? Se a soja agrediu nossa fauna e flora, a cana-de-açúcar pode levar o que resta à extinção.