Bem-vindos a um admirável século novo

Jornal O Popular, 21/11/2007

Bem-vindos a um admirável século novo

Laerte Guimarães Ferreira

Sérgio Besserman, ex-presidente do IBGE e atual presidente do Instituto Municipal de Urbanismo Pereira Passos (responsável pelo Protocolo do Rio, conjunto de medidas destinadas à mitigação dos efeitos das mudanças climáticas sobre a cidade do Rio de Janeiro, em particular aqueles relacionados ao aumento do nível dos mares), costuma dizer que o século 21 teve início em 2 de fevereiro de 2007. Nesta data, em Paris, foi lançado o relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), contendo as bases físicas das mudanças climáticas.

Laerte Guimarães Ferreira

De forma inequívoca e com base em vários estudos anteriores, esse documento fez soar o alerta de que o clima do Planeta está mudando, e rápido. De 1970 a 2004, a concentração de CO2, principal gás entre os chamados gases do efeito estufa, aumentou 80%. Entre as conseqüências, que já estamos sentindo, um aumento de aproximadamente 0,7º C na temperatura em pouco mais de 25 anos e eventos extremos mais freqüentes, como as chuvas do último verão, bem acima da média dos últimos dez anos, e o Ciclone Sidr, que causou ao menos 3,2 mil mortes em Bangladesh.

Ao relatório do grupo de trabalho 1, dois outros relatórios parciais se seguiram. Em 6 de abril, em Bruxelas, foi lançado o relatório sobre os impactos, adaptação e vulnerabilidade às mudanças climáticas, no qual há menção a um possível processo de savanização em partes da Amazônia Oriental, cujo ápice, mantidos os níveis atuais de aumento de temperatura, deve ocorrer por volta de 2050, e uma diminuição de até 24% das espécies de árvores do bioma Cerrado. O terceiro relatório da série, lançado em Bangcoc, em 4 de maio, é voltado à mitigação dos efeitos climáticos, o que incluiria maior utilização da energia nuclear e de biocombustíveis, bem como construções mais eficazes quanto ao uso de iluminação natural e isolamento térmico. Faz menção à recomposição de florestas, ao uso de melhores práticas agrícolas com vistas a aumentar os estoques de carbono nos solos e a uma maior eficiência no uso de fertilizantes a base de nitrogênio (o óxido nitroso – N2O –, outro importante gás do efeito estufa, teve um aumento de 70% nos últimos 30 anos). Ainda que a opção pelos biocombustíveis seja bem menos polêmica do que as fontes nucleares, o seu uso também requer cautela e uma melhor análise sobre custos (incluindo os ambientais e sociais envolvidos em sua produção) e benefícios. Recente artigo na revista Science questiona o potencial dos biocombustíveis, comparativamente aos combustíveis fósseis, quanto à redução do CO2 atmosférico.

Foi lançado sábado, em Valência, Espanha, o chamado relatório-síntese, documento voltado aos governantes e demais tomadores de decisão, no qual são sintetizados e enfatizados os principais pontos dos três relatórios anteriores. Ao longo de nove meses nos inteiramos, ávidos, dos acontecimentos e nos acostumamos aos termos técnicos mais diversos. Enfim, nos tornamos um pouco mais próximos do Planeta e de seus estranhos (ainda que naturais!) fenômenos.

Por pouco a Amazônia não foi esquecida. O fato de a Amazônia ter sido pouco mencionada (3 linhas, em 23 páginas) se deve principalmente à opção do IPCC em priorizar, neste último relatório, as regiões mais vulneráveis do Planeta, como a África (que pode, até 2020, ter em torno de 250 milhões de pessoas vivendo em condições de estresse hídrico) e certas partes da Ásia. Por outro lado, nos últimos dez anos, através do Experimento de Grande Escala da Biosfera-Atmosfera na Amazônia (projeto LBA), a Amazônia tem sido intensamente investigada, ao mesmo tempo em que, pelos mais variados motivos, as taxas de desmatamento começam a mostrar algum declínio.

Quanto ao Cerrado, sobre o qual não há qualquer menção no relatório-síntese, poucos têm sido os estudos voltados ao entendimento das transformações sofridas e dos possíveis impactos destas sobre os recursos hídricos e as mudanças climáticas, tanto em nível regional quanto global. Como atesta o mais recente e completo mapeamento do bioma, realizado pela Embrapa Cerrados, Universidade Federal de Uberlândia e Universidade Federal de Goiás, em aproximadamente 40 anos, 47% da vegetação original do bioma foram convertidos em áreas de pastagem e agricultura. E os desmatamentos continuam, a uma taxa estimada de 0,6% ao ano. No período de 2004-2005, dados do Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento da Universidade Federal de Goiás (Lapig-UFG) indicam 6 mil km2 de novos desmatamentos. A julgar pela reportagem especial do The New York Times (2/10/07) na qual o Cerrado é celebrado como a nova e promissora fronteira agrícola do Brasil, não há indícios de que esta situação possa ser revertida a curto prazo.

Em Goiás, o quadro é ainda mais grave. Da área total do Estado, em torno de 45% já foram transformados em pastagens e outros 18% em áreas agrícolas. Da vegetação remanescente, prevalecem áreas altamente fragmentadas e irregularmente distribuídas, o que resulta em um passivo de aproximadamente 24 mil km2 desprovidos de vegetação nativa ao longo dos rios e de 45% das bacias hidrográficas com cobertura vegetal inferior ao requerido pelo Código Florestal. Na bacia do Ribeirão João Leite, responsável pelo abastecimento da região metropolitana de Goiânia, em apenas 18% da sua área, de 768 km2, prevalece ainda a vegetação natural. Conforme estudos recentes no âmbito do Programa Multidisciplinar de Doutorado em Ciências Ambientais da UFG, os desmatamentos observados na bacia como um todo, e em seus ambientes ripários, em particular, respondem por até 81% da variação na qualidade da água.

Em nossa ânsia pelo futuro, sempre associamos o século 21 ao domínio da tecnologia, superação de muitas das limitações humanas e fartura. Sem dúvida, tudo isso, e muito mais, existe no século 21 real em que vivemos. Contudo, e a exemplo do Admirável Mundo Novo preconizado por Aldous Huxley, este também é um século marcado por profundas diferenças sociais, fome, populações inteiras subjugadas. E, mais do que nunca, por crises ambientais profundas, que, mais do que colocar em risco a qualidade do nosso dia-a-dia, põem em risco a própria continuidade da vida na Terra, ao menos como a conhecemos e gostaríamos que fosse perpetuada.

Ao comentar sobre o que podemos fazer, quanto a futuro tão incerto, de forma muito apropriada, o dr. Rajendra Pachauri, presidente do IPCC, evoca Mahatma Gandhi: “Seja a mudança que você quer ver no mundo!”

Laerte Guimarães Ferreira é pesquisador do CNPq e coordenador do Programa Multidisciplinar de Doutorado em Ciências Ambientais da Universidade Federal de Goiás