Bertran, o historiador cerratense

Jornal Diário da Manhã, 25/11/2007

Bertran, o historiador cerratense

A primeira vez que estive com Paulo Bertran foi em 1982 em meio a dúvidas acadêmicas e economicismos universitários. Eu o conhecia apenas de nome e de uma obra já famosa, Formação Econômica de Goiás, de 1978. Não imaginava que nossos destinos fossem se cruzar pelos Caminhos de Goiás. Nos encontramos em algumas palestras, em outras inquietações acadêmicas, um outro tempo que acabava sendo complemento de seqüências de nossos capítulos de vida, de histórias e pesquisas. Em outro encontro, o ano era 1988 e eu havia concluído outro trabalho versando sobre a História Política de Catalão em parceria com Juarez Barbosa e o grande mestre – meu e de Paulo – Luiz Palacin Gomez. A vida não havia ainda nos dado as mãos, mas nossas idéias sobre a História de Goiás começavam a se avizinhar. Com a pesquisa sobre Catalão muitos de meus conceitos e análises sobre Goiás começaram a ser questionados no meu íntimo de historiador, mas eu não havia encontrado ainda o respaldo, a parceria de idéias, a reverberação e maturidade, coisas que já sobravam em Paulo Bertran, só que nós dois éramos meio assim “guarda-noturno com empregada doméstica”, quase não nos encontrávamos.
Nosso encontro veio a se dar em torno de um projeto iniciado por Bertran e que se constituiu em verdadeira paixão devido ao conhecimento que ele tinha sobre o tema e que naquele momento era financiado do governo federal através do Ministério da Cultura. Tratava-se da reunião e publicação do acervo sobre Goiás e de vários outros Estados existentes no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa. Rico, riquíssimo e de imensa intimidade com os olhares bertranianos. Esse projeto ao ser concluído veio a se chamar de Projeto Resgate, coordenado por José Mendonça Teles no IPBC. Bertran era grande conhecedor da documentação moradora de séculos naqueles arquivos d’além-mar. Quando retornava de alguma viagem de Lisboa era uma festa documental, novas idéias, novas descobertas, grandes confusões mentais, novos rumos. Seus olhos brilhavam e ele dava aquele sorriso soluçado que sempre era prenúncio de um novo livro.
Bertran preparava na época o seu fantástico História da Terra e do Homem no Planalto Central: Eco-História do Distrito Federal, que seria lançado em 1994 pra arrasar com os conceitos pré-concebidos, pra fazer os autores repensar a trajetória sociocultural do goiano, pra bagunçar mesmo o coreto das idéias, bem ao estilo de Paulo Bertran. Concretizava-se ali também o estilo de escrever a História com gosto literário. Por ali desfilavam páginas e páginas de beleza e sabedoria, de verdadeira aula de arte poética do historiador. Fiquei encantado com aquela obra e a adotei em todos os cursos que cabia.
Naquele momento eu concluía minha tese de doutorado na Universidade de São Paulo, intitulada Caminhos de Goiás: da Construção da Decadência aos Limites da Modernidade, onde procurava desconstruir a mim mesmo e questionar alguns conceitos prontos e acabados sobre a interpretação histórica de Goiás. Esse trabalho seria defendido na USP em 1995. A essa altura da vida, Bertran já era para mim uma espécie de guru, interlocutor, xamã, estrela-guia pelos céus do planalto central, pelo cerrado planaltino, pela desconstrução dos ontens que haveríamos de propor a nós mesmos.
Foi, porém, um texto seu publicado na Ciências Humanas em Revista em 1994 intitulado A Memória Consúltil e a Goianidade que me inspirou de vez em meu doutoramento. Nosso diálogo em torno das idéias pré-concebidas sobre a História de Goiás vinha de longe, só não tínhamos chegado a uma trilogia de desconstruções e Paulo tinha a receita correta do início, ou seja, nesse trabalho, Bertran a inicia pela idéia de decadência pra se entender à crise da mineração em Goiás a qual eu abracei e dei prosseguimento. Ali, Bertran estava pleno, inteiro, em total domínio do texto, do conteúdo, dos documentos e mais: das interpretações. Lembro-me como se fosse hoje o quanto vibrei vendo-o defender essas idéias numa palestra na Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia, viajando por sobre a História, a Literatura e principalmente pela Antropologia. Desmistificou as idéias do marasmo da terra goiana, do ócio e da decadência e propôs novas possibilidades interpretativas pela seara da história cultural, numa visão mais otimista sobre a gente do cerrado, sobre o equívoco das óticas dos viajantes europeus e suas reproduções de idéias. Esse texto não só me inspirou muito como me deu as bases para o primeiro capítulo de meu Caminhos de Goiás. O restante dos capítulos viria nessa senda e tratariam da questão do atraso e da modernidade, frutos da inspiração bertraniana nesse sopro de renascer de idéias.
Quando publiquei este livro numa co-edição da Federal e da Católica, ele não poderia ter outro prefaciador que não Paulo Bertran. Era também uma forma de devolver a gentileza por ter sido convidado para apresentar seu mais novo trabalho a Notícia Geral da Capitania de Goiás, de 1997. Tive a honra de tecer comentários, mas era fundamentalmente uma forma de dizer obrigado ao Paulo por ter aberto a “picada na mata” por onde eu faria meus Caminhos de Goiás e muitos de nós faríamos outros vários caminhos.
Tínhamos planos e parcerias futuras. Uma se consolidou para todo o sempre e elevou meu orgulho em ter um livro escrito com cada um de meus mestres. O de Catalão com Palacin e o Goiás: 1722-2002 com Paulo Bertran. A idéia era atender uma encomenda do governador Marconi Perillo em ter um livro, digamos assim, oficial sobre Goiás. Convidaríamos fotógrafos fantásticos e encomendaríamos textos a escritores e estudiosos apaixonados por regiões goianas. Cada um de nós escreveria dois textos.
Sensibilidade e beleza estariam reunidas com a paixão e o amor pela terra goiana. Viagem sem fim pelas tradições, pela cultura, pelo Goiás geológico, pelo cerrado, pelas origens e vasto sertão, Goiás, Goiânia, Pirenópolis, Corumbá, Sul, Norte, Águas Quentes, e muito mais. Era pra ser só o começo, mas Paulo nos deixou e me pegou no contrapé, em viagem, sem poder me despedir, sem poder encomendar nada do que ele iria encontrar do lado de lá, sem pedir o endereço desse outro tipo de museu onde estaremos todos, parte dessa mesma história que contaremos pra outras gerações, juntos, um dia... Confesso que senti a mesma solidão acadêmica de quando perdemos Luís Palacin: eram minhas referências, meus ídolos na História de Goiás, quase minhas Bíblias, meus dicionários ambulantes, meus professores e meus colegas. Depois de descobrir a Cidade de Pedras nos Pirineus, o Paulo incansável escrevia a História de Palmeiras, livro que comemoraria parte do Centenário de Alemão e preparava outro sobre Pirenópolis. Depois de tudo nos deixou uma enorme saudade, obra impublicável, senhora de outros ritos.

Nasr Fayad Chaul é professor titular em História da UFG, doutor em História Social pela USP, compositor e ex-presidente
da Agepel