Formação do médico: reflexões após 40 anos

Jornal O Popular, 28/11/2007

Formação do médico: reflexões após 40 anos

Sempre entendi a profissão que abracei como algo especialíssimo, achando mesmo que não deve ser para qualquer pessoa.

Roberto Alves Pereira

Quem ingressa em uma Faculdade de Medicina logo percebe as carências materiais, o denodo dos professores, e vai paulatinamente entendendo (assim penso eu!) que a exclusão não é de agora.

Os cadáveres nos quais iniciamos o aprendizado de anatomia são de indigentes, e devemos respeitar aquelas “peças anatômicas” como partes de um corpo que teve vida, muito provavelmente só conheceu dificuldades e amarguras, para chegar a ser “doado” a uma faculdade, por não ter quem reclamasse seu cadáver.

Paralelamente ao estudo de anatomia, o acadêmico toma contato com o estudo microscópico dos tecidos de que são constituídos os órgãos (fígado, coração, pulmão, etc.), para que possa conhecer sua estrutura, e mais adiante compreender as alterações que as doenças causam na mesma, dificultando ou impedindo que determinado órgão desempenhe sua função satisfatoriamente (hoje temos o recurso dos transplantes dos mais variados órgãos, apesar da precária infra-estrutura para realizá-los).

Após estudar anatomia, histologia (estrutura microscópica), fisiologia (estudo de como funciona o organismo), com matérias afins correlatas, muito importantes, o estudante de Medicina vai começar a examinar as pessoas que padecem de doenças e que freqüentam os ambulatórios e as enfermarias dos hospitais de clínicas.

Aqui também o acadêmico estará examinando um indivíduo excluído, que esperou meses ou anos para ser atendido, e se submeterá a ser examinado por vários estudantes em momentos diferentes, respondendo às mesmas perguntas com paciência, sujeitando-se a toda sorte de desconforto, nem sempre tratado com o respeito que merece.

Após estudar clínica médica, tendo uma visão de suas várias especialidades, e noções básicas de cirurgia, o estudante de Medicina escolherá uma especialidade em que deseje atuar, desenvolvendo estudos específicos e mais aprofundados em seu internato e residência médica, o que a cada ano exige mais tempo.

Em toda sua formação, o estudante de Medicina é apresentado (se ainda não se interessava em conhecê-la) à realidade trágica: o pobre, o miserável, foi quem emprestou seu cadáver, seu corpo debilitado pelas doenças, muitas vezes causadas por falta de condições mínimas de dignidade de vida, como moradia, água tratada, destinação correta dos dejetos, condições de trabalho seguras, quando há trabalho.

Entendo que o exercício da Medicina, divorciado de uma luta constante pela melhoria das condições de vida de toda a população, não torna tão nobre o seu labor.

Temos de lutar, e muito, para sermos valorizados e termos um ganho que satisfaça às nossas necessidades materiais, mas não podemos nem devemos voltar as costas para um estrato social que foi o único que contribuiu para o nosso aprendizado, daí minha dificuldade em entender como podemos fazer parte de uma mesma categoria profissional, com objetivos tão díspares.

As elites se organizam (não adianta pôr a culpa só nos políticos, que realmente são uma lástima!) de forma a garantir seus ganhos financeiros, sem nada contribuírem para uma efetiva transformação na qualidade de vida das camadas excluídas da sociedade.

No dia 15 de dezembro de 2007, nós, formandos pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás do ano de 1967, estaremos reunidos para comemorar a vida, após 40 anos de formados. Nessas reuniões, ficamos com vontade de parar o tempo, de pedir desculpas por não estarmos juntos mais vezes, por nossa intolerância com o que julgamos ser falha de um colega.

Relembraremos com certeza a história da criação da faculdade, pois fomos a terceira turma a ingressar na mesma, homenagearemos o dr. Francisco Ludovico de Almeida Neto, seu idealizador e primeiro diretor (que nós carinhosamente chamamos de eterno diretor), e ao homenageá-lo queremos estender nossa gratidão aos nossos mestres e aos que nessas quatro décadas contribuíram para a consolidação da faculdade, conferindo-lhe respeitabilidade.

É também nessas reuniões que podemos deixar nossas emoções transbordarem em lágrimas, por tudo que sofremos ao longo dos anos em nosso trabalho, em nossas famílias, pelas frustrações e decepções que a vida insiste em nos apresentar.

Agradecemos a Deus a oportunidade que nos foi dada de sermos médicos, desejando que cada um de nós tenha se esforçado ao máximo para honrar nossa profissão, respeitando sempre o ser humano que necessita de nossos cuidados.

À sociedade como um todo, e aos jovens médicos em particular, desejamos que cultivem a amizade, pois ao comemorarmos 40 anos de formatura em Medicina, e depois de enfrentarmos as dificuldades próprias de uma profissão de risco, nas várias especialidades e em várias localidades, ainda não encontramos um sentimento mais profundo e aglutinador do que a amizade.

Feliz reunião a todos nós, formandos pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás, do ano de 1967.

Roberto Alves Pereira é médico