(UFG) Mitos do Eldorado
Mitos do Eldorado (Diário da Manhã, 16/02/2008)
Volta à baila uma discussão por vezes antiga sobre derrubar ou não a estátua do bandeirantes que configura o símbolo de uma época de nossa História e dá nome a praça do mesmo nome. Presente de grego ou não, feito por estudantes paulistas da Faculdade do Largo do São Francisco à nova capital, a referida estátua tem seu perfil ameaçado novamente por proposta do vereador Rusembergue Barbosa, que sugere erguer em seu lugar uma justa homenagem a Attílio Corrêa Lima. Questiona-se o ícone dos desbravadores dos sertões os bartolomeus de todas as épocas, o pai e o filho. Nesse contexto mais o filho, o Bartolomeu Bueno da Silva, que, aos 67 anos, beirou essas matas do sertão em busca de metais preciosos e cujo apelido, nos ensina Mestre Bertran, significava “diabo que foi” ou “diabólico”, alcunha da qual o mesmo muito apreciava.
A proposta pode nos trazer a oportunidade de avaliar um pouco melhor qual o real papel que esses homens intitulados de bandeirantes tiveram no processo histórico de sua época. Quem eram, o que faziam, qual sua função sociopolítica na economia do País no contexto em que viveram, etc. Ambiciosos ao extremo, destemidos, sanguinários, sonhadores, os bandeirantes não podem ser vistos apenas como um lado da moeda de nossos olhares contemporâneos, cuja tendência é ver os dizimadores de índios antes de compreender o processo como um todo. Índios foram dizimados antes e continuaram sendo após a presença de bandeirantes em nosso território. Para a maioria dos líderes valiam muito mais vivos, como moeda corrente, do que mortos, muitas vezes num embate em que a escolha era matar ou morrer. Não se quer aqui de forma alguma justificar a matança como algo normal ou que apenas aconteceu. Tudo na História tem sua lógica. A lógica do Bandeirante era o desbravamento em busca de ouro, prata e glória. Não havia caminho intransponível, rio que não fosse navegável, mata que não pudesse ser cortada, ouro que não pudesse ser encontrado. O silvícola ou outro obstáculo, se não fosse aproveitado, teria que ser retirado. As duas coisas foram feitas. Preou-se índios em larga escala e travaram-se combates extremos nesse Goiás de Mitos do Eldorado.
Por outro lado, os bandeirantes foram responsáveis pela ocupação desordenada ou não de nosso território, pela audácia do desafio, pela coragem da missão, pela ambição desmedida... Conquistadores por excelência eram homens comuns de seu tempo onde a empreitada proposta significava a glória do intento ou a morte do sonho. Acredito que, sem querer aqui defender a estátua em louvor ao paulista, que o tema pode, repito, bem servir para trazer à tona a discussão mais próxima do real do processo histórico brasileiro dos séculos XVII e XVIII, principalmente em relação ao que comumente chamamos de período aurífero da História de Goiás. Serve também para possibilitar o exercício de nossos conhecimentos sobre nós mesmos, nossa identidade, nossa cultura, no pretérito memorialista, nossos ícones e os nomes que damos aos locais e coisas que nos personalizam e nos referenciam perante o país e o mundo. A figura do Bandeirante já se encontra incrustada no cotidiano das pessoas, não será vindo abaixo que o local deixará de ser chamado de Praça do Bandeirante, assim como a Praça Cívica dificilmente será chamada pelos goianos ou goianienses de Praça Pedro Ludovico e assim por diante.
Assim, não creio ter muito sentido derrubar uma estátua como se isso reformulasse a História. Temos indignação pela dor da cobiça bandeirante, mas temos também que reconhecer o papel que desempenharam na ocupação inicial de nosso território. Afinal, a justa lembrança de um busto ou estátua em homenagem a Attílio Corrêa Lima não seria também reconhecer, por um lado, o trabalho de Bandeirante que ele e Pedro Ludovico fizeram na conquista e ocupação da nova capital sem os índios da época pelo caminho? Foram, em certo sentido, desbravadores, ambiciosos, destemidos, conquistadores do século XX. Pois bem, os chamados Bandeirantes eram, em sua época e contexto, vistos dessa forma por parte da sociedade à qual pertenciam.
É impensável compreender a fundação do Arraial de Santana, depois Vila Boa, mais tarde a Cidade de Goiás, Patrimônio Mundial, sem entender o papel das bandeiras paulistas, de suas conquistas, da expansão territorial de Goiás, do povoamento inicial, das minas de ouro e prata que despertaram toda sorte de cobiças, do comércio pras bandas dos Pirineus, e, também, é claro, da dizimação indígena presente nesse contexto.
Por isso, aquela simples estátua que ornamenta uma das praças de Goiânia carrega muito mais do que parece. Sabendo decodificar significa uma boa e misteriosa parte de nossa História e Cultura, de nossa tradição e memória. Pode, aos apressados, significar tão somente a derrubada de um paulista matador de índios. Não se pode decepar a História com a faca do desconhecimento.
Mas e o Attílio Corrêa Lima hein? Quem poderia fazer uma estátua que pelo menos tangenciasse sua importância no processo histórico de Goiânia nos anos 30/40 como um dos grandes construtores de nossa Capital? Já passa da hora de homenagear esse construtor de idéias magistrais no chão do cerrado goiano, esse semeador de passagens, ruas, praças e símbolos onde se ergueu a Capital do sertão. Afinal, todos eles fazem parte de nossos Mitos do Eldorado, aquela montanha de conhecimentos que nunca descobrimos de todo e quanto mais subimos mais horizontes nos aparecem. Quanto mais alto galgamos menor ficamos. Não será derrubando estátuas e símbolos que as teremos aos nossos pés.
Nasr Fayad Chaul é professor titular em História da UFG, doutor pela USP, compositor, ex-presidente da Agepel e presidente da Fundação RTVE da UFG