A estátua do Diabo Velho e os vereadores de barro
A estátua do Diabo Velho e os vereadores de barro (Diário da Manhã, 20/03/2008)
Bartolomeu Bueno da Silva herdou do pai o nome, o apelido e a profissão. Foi seu pai a quem os índios teriam apelidado “Diabo Velho”. O Anhangüera da Praça dos Bandeirantes não é o que a lenda diz ter ateado fogo à aguardente, ameaçando os Goyazes de incendiar os rios. Não se sabe tão pouco se esse fato realmente aconteceu.
A controvérsia sobre retirar sua estátua da Praça dos Bandeirantes é inusitada. Quando mais jovem e pouco conhecedor da História, também flertei com a idéia. Contestava a homenagem a um desbravador, com um bacamarte (espingarda) e uma bateia, no Centro de Goiânia. É mais comum criticar nomes de generais da ditadura em logradouros públicos (mas isso é outra história).
Nos países da América espanhola, são freqüentes estátuas de próceres da independência sobre o cavalo, empunhando uma espada. A colonização espanhola teve semelhanças e diferenças da nossa. Entre as semelhanças, houve o envio de riquezas à metrópole. Nas diferenças, aqui se manteve a monarquia portuguesa, enquanto lá processos de independência mais aguerridos geraram países menores, com vilões e heróis nacionais.
A miscigenação brasileira também foi maior que na América espanhola, cuja população é eminentemente indígena. Não obstante, ambos tiveram reduzida cerca de 90% da população original – devido ao poderio bélico do colonizador, a doenças para as quais os nativos não possuíam defesa e à aculturação.
Cogita-se agora substituir a Estátua de Bartolomeu Bueno (o filho) pela de Attilio Correia Lima, arquiteto da Capital goiana. Ao comparar Bartolomeu, paulista que rompeu o Tratado de Tordesilhas (pelo qual pertenceríamos aos espanhóis) com um urbanista do século XX, penso no conceito de “consciência possível”.
Luís Palacín aplicou o conceito ao caso de Padre Antônio Vieira, que, no século XVII, catequizou indígenas brasileiros. Significa que um homem pensa dentro das possibilidades de sua época, de sua condição particular na sociedade. Assim, Vieira defendeu os índios, livrando-os da escravidão. Mas pregou a submissão dos povos conquistados à Igreja Católica e a Portugal.
Após essa breve cronologia, gostaria de questionar o papel dos vereadores na formação da sociedade atual, já que sua composição muda ao longo do tempo. A pergunta também deveria ser feita pela população, diante dos novos candidatos a Anhangüera. Alguns legisladores talvez não saibam sua verdadeira função, movidos por vaidades particulares. Não seriam os únicos a não possuírem referências morais ou éticas dentro de si mesmos.
Como há muito cacique para pouco índio, diz-se que a História é contada pelos vencedores. Na realidade, ela se constrói o tempo todo, por cada um de nós. Cícero, orador romano, explica que “quem não conhece a História está condenado a ser criança para sempre”. Agir como criança sendo adulto é abrir mão de um papel social. De outro modo, colocar-se num pedestal inatingível, sem medir a conseqüência dos próprios atos.
O que faz um vereador? Com honrosas exceções, ele faz o que deveria? Em Goiânia, protagonizaram recentemente escândalos como desvios de dinheiro do INSS, nepotismo cruzado e contratos sem licitação. Também dividem o tempo prestando homenagens e conferindo títulos de cidadania. Além de agirem como estátuas frente às denúncias envolvendo seus pares, tudo que um vereador mais pode desejar nas próximas eleições é gabar-se de ter expulsado o diabo da praça.
A transparência da sociedade moderna não garante sozinha a consciência de nosso papel político. Devemos cobrar dos governantes respeito às instituições públicas, pois, como as estátuas, eles não são intocáveis. Resta saber se a intenção do vereador foi fazer justiça aos indígenas, homenageando Attilio Correia Lima, ou chamar a atenção para si.
O bezerro de “ouro” bíblico não representa apenas uma espécie de ídolo de barro. Hoje é outro tipo de metáfora, para quem “mama” nas tetas do poder. Em vez de fiscalizar estátuas, comecemos a esculpir a consciência possível, através da cidadania. Um povo sem memória é um povo sem História. Não é por não termos mar na terra dos Goyazes que desejemos um mar de lama. Expulsemos o demônio do imobilismo, trocando um vereador de barro nas próximas eleições.
Gustavo Henrique Pessoa Chaves
bacharel em Português e Literatura, licenciado em Português e Espanhol pela UFG