Reféns
Reféns (Diário da Manhã, 28/03/2008)
Somos reféns de nossa própria vida, aranhas presas ao emaranhado de teias sem rumo ou nexo, onde nem mesmo sabemos o ponto de partida. Perdemos o juízo, a capacidade de nos sensibilizarmos com a dor do outro, onde tudo parece normal, sem lembrar que “o mar tem mais perigo é quando é calmaria”. Como todo esse caos de nosso cotidiano começou? Foi pela multiplicação dos povos, pela urbanização das cidades, pelo lucro e pela cobiça desenfreada ou pelo avanço tecnológico que nos desumanizou e retirou de nós a única capacidade que havia sobrado: o amor em última instância?
Somos reféns dos planos governamentais, das oscilações da bolsa, do mosquito da dengue, do vizinho que era tão gente boa e se revelou o monstro que sempre foi. Tornamo-nos reféns do tempo, do inexorável minuto que faltou no dia de ontem, reféns do relógio digital de nossa pressa, do ponteiro que só existia antigamente na badalada de um sino de uma cidadezinha perdida na memória de nosso interior. Ficamos reféns de tudo o que não pode ser feito no dia de hoje, da loucura do trânsito engarrafado, do atraso no vôo, do céu poluído que nos devolve em tragédias as agressões aprisionadas de nossos absurdos.
Somos reféns dos bandidos que já não escolhem mais hora nem lugar, nem dia nem noite, nem bairro nem vítima. Contam com nossa incapacidade de indignação perante o cotidiano. Ficamos reféns dos bancos que nos controlam e nos taxam a incompreensão da lógica matemática de seus serviços, mas que no fim das contas geram lucros astronômicos. Somos reféns do medo de estarmos vivo, assustados por mais um dia e que “Deus lhe pague”. Reféns do sono que não vem e da insônia que não faz companhia. Reféns das noites em que os filhos saíram e não sabemos se voltarão sãos e salvos. Torturados por não termos mais em quem botar a culpa por tanto descalabrado ou por não acreditar que exista alguém capaz de dar jeito na existência em que chegamos.
Avançamos na tecnologia e ficamos reféns da atualização, horda de desumanos a vagar em busca de não se sabe o quê, abstratos e concretos, sem distinguir a tênue fronteira entre as duas dimensões. Filhos bastardos e tardios do desenvolvimento da civilização, onde o mosquito da dengue faz o século XXI se curvar ao XIV. Assumimos o individualismo ao extremo, o egoísmo como defesa e nos cercamos de cercas e arame farpado, de eletricidade e de muros, exaurimos a sobrevivência. Temos hoje mais trancas do que portas, mais alarmes do que segurança, mais medo do que esperança. Reféns até mesmo da sorte. Não há mais nada exato. Nem a propriedade diante do financiamento, da terra produtiva diante da invasão, do amigo diante do traidor, nada, absolutamente nada nos assusta, quando muito nos “assombra a súbita intenção de um incesto”.
Somos reféns das religiões que nos aprisionam no futuro, apegadas profundamente ao medo que temos do que virá depois da morte, ao encantamento que precisamos manter num salvador da pátria mesmo que não tenhamos sequer a pátria. Precisamos acreditar na salvação, pois o desespero fica suportável. Se a ciência descobrir um dia o que está por trás da morte, todas as religiões terão fim, naufragarão nas águas da própria enchente. Templos, igrejas, mesquitas e sinagogas estão cada vez mais cheios de gente com fé e esperança, o que significa que ainda sobrevivemos internamente ao mundo externo, repletas de nossas orfandades e nossas ilusões. Só que não temos como evitar o confronto cada vez mais latente entre a ciência e a fé. Uma triunfará e não haverá lugar tranqüilo para a outra.
Carteira de Identidade, de motorista, CPF, senhas intermináveis, controles de tudo o que fazemos, o Big Brother é aqui mesmo, no dia-a-dia imperceptível do controle estatal. Somos reféns de números e documentos sem os quais não existimos e aos quais nos revelamos. Reféns do preconceito dentro da própria casa, das cotas que tentam amenizar o descompasso entre o capaz e a cor, o mérito e a doação. Reféns de um nível cultural cada vez mais baixo, chulo e idiota, do diálogo monotemático, da solidão quase impossível no planeta Terra e não há receita, aliás, não temos nem mesmo remédio. O cotidiano ficou embaçado pelo espelho. A atrocidade ficou comum diante desse tempo incomum. E depois os presos são os da cela ao lado!
Nasr Fayad Chaul
prof. titular em História da UFG, doutor pela USP, compositor, ex-presidente da Agepel e atual presidente da Fundação Rádio e Televisão Educativa e Cultural da UFG.