Academia Bela-vistense
Academia Bela-vistense (Diário da Manhã, 14/07/2008)
Nesta rampa que borda o Suçuapara / (contam velhinhas que rezaram
nela), / pelo ano de setenta, uma singela / ermida levantou-se airosa e clara. / E, para logo, à sombra da capela, o casario em torno se espalhara, / em ânsia de progresso, ao tempo rara, / e eis que surge a cidade assim tão bela. / Berço de rosas, ninho perfumoso / - de Egerinêo, de Vasco, de Altamiro, / dos Lobos e de Arlindo P. Cardoso. E de Canedo os fúlgidos anais / guarda-nos, entre leques, num suspiro, / a ronda verde dos buritizais.
Leo Lynce nasceu em Piracanjuba, todavia a Bela Vista, a Suçuapara de outros tempos, dedicou perenes amores. O poeta de Ontem valoriza bela-vistenses que contribuíram decididamente para que a urbe se projetasse nos estágios da cultura goiana. É o caso, por exemplo, de Egerinêo Teixeira, jornalista de escrita escorreita e que se desdobra com brio e desassombro; político amante da dignidade, conforme se verifica através de sua passagem pela Prefeitura de Campo Formoso, hoje Orizona, nome que Benedito Silva abominava.
De Vasco dos Reis Gonçalves, direi que se dedicou à política, tendo sido, por anos seguidos, secretário da Educação e Cultura, ao tempo da primeira fase administrativa do governo de Pedro Ludovico, ocorrendo que este, por cerca de um ano, aqui clinicou em início de carreira. Destacou-se Vasco, ademais, como orador de admirável fluência e dono de reconhecidos recursos retóricos, condição que deixou bem assinalada quando de sua presença na Câmara dos Deputados. E o poeta? Não me furto ao prazer de transcrever curioso soneto seu: Vou ver se agora escrevo um bom soneto. / Dizem que é fácil; mas o que hei de ver / É se nem uma falta só cometo, / Em cada verso que vou escrever. / Mas o diabo é esta rima em eto / que à memória não me vem a ter. / Mas cumpro tudo que prometo, / Cumpro a promessa feita a meu prazer. / Como é fácil, como a coisa é boa! / Que, sem esforço, mesmo assim à toa, / Já só me falta o último terceto. / Com este verso, faltam-me só dois; / Feito este assim, assim logo depois, / Eu tenho terminado o meu soneto!
E sobre Altamiro, meu saudoso amigo e confrade Altamiro de Moura Pacheco? Muita coisa já falei a seu respeito e contudo meu repertório sobre ele jamais se esgotou. Médico competente, mecenas, escritor de embocadura. Ligou seu honrado nome à construção de Brasília. Comandante na batalha de desapropriação das terras que abrigaram o contexto urbano da nova capital, missão em que enfrentou energicamente interesses contrariados de poderosas empresas do setor imobiliário. Como agradecimento ao imenso labor realizado pelo goiano ilustre, Juscelino, de próprio punho, endereçou-lhe carta que alcançou dimensões inequivocadamente históricas.
Em José Lobo, cujo nome ilustre se deu à praça principal de Bela Vista, reconheço o historiador consciente, aliciado pela pesquisa incansável e produtiva. Creditar-se-á, concomitantemente, no dossiê de sua jornada, a solidariedade efetiva que ofereceu à fundação do jornal Folha do Sul, nesta cidade, integrando a grei formada ainda, dentre outros, por Benedito e Honestino Guimarães e Leo Lynce.
Gilberto Mendonça Teles se firma na galeria dos filhos de Bela Vista como personalidade ímpar, cuja escalada nos embates da vida lhe proporcionou curriculum que concedeu a seu portador projeção internacional, considerando-se sobretudo que o mister do seu labor magisterial conquistou espaços em recintos universitário da França, Estados Unidos, Portugal, Espanha, Uruguai. Doutor em Letras e livre docente em Literatura, manejou eficientemente a crítica literária, com incursões pela teoria da literatura; e, além disso, compõe poesia tecida nos fios de uma inspiração inesgotável, trabalhada por forma condizente com sua importância.
O mais interessante, sem dúvida: Gilberto não esqueceu seu berço.
É tempo de jabuticaba em Bela Vista. / - Cada pé custa cinqüenta mil réis, / mas pode chupar uma hora por cinco. / A mão colhe depressa a maior, a mais negra, / o dente fere a casca e a boca ressoa / o estalido que a língua absorve, / e desgusta ininterrupta. / Às vezes no céu da boca a ferroada / zombateira do marimbondo invasor. / Mas é preciso comer depressa, / é preciso comer mais, e mais. / De repente, o acontecimento mais doce: / os seios trêmulos da namorada insensível / cantam nos galhos.
Outro filho de Bela Vista, a famosa terra dos "buritizais sussurrantes", um idealista que circulou pela existência sempre de olho em novos horizontes, sobressaiu-se não como nome de rua, homenagem, aliás, que se lhe prestou com inteira justiça, porém como eterno apaixonado de tudo em que pousou as milagrosas mãos que Deus lhe deu: desenho, pintura, cartografia, fotografia. Adelino Roque de Souza desenvolveu, com desenvoltura, tais cometimentos; experimentou sensações diversas, porque, segundo Hélio Lobo, "estava sempre em transição". Espírito curioso e irrequieto jamais se conformou com os contornos exclusivos da rotina de cada dia. Não conseguia conter a poderosa ânsia que o arremessava a empreitadas inéditas.
Adelino é o patrono da Cadeira nº 6 que, a partir de agora, com todo
empenho e bem querer, passo a ocupar. Ele é a luz de foco especial que haverá de iluminar a minha trajetória. Nascido em Bela Vista, terra de tradições marcantes e mais que centenárias, a 5 de setembro de 1892. Viveu pouco: apenas até 18 do mesmo mês de setembro de 1943. Somente 51 janeiros. Admita-se, contudo, que as lutas ingentes; as pesquisas incessantes a que se dedicou; os muitos sonhos que povoaram sua mente; as aventuras de sua caminhada fizeram de sua vida o trepidante maquinário que lhe roubou energias quiçá armazenadas para um viver mais alongado.
Adelino não estudou, isto é: não freqüentou escola regularmente. Autodidata portador de força inquebrantável, dedicando-se exemplarmente ao cumprimento das incumbências que lhe atribuíram, desde a viola que castigava na animação dos pagodes à confecção de cartas geográficas, não conquistou canudos de qualquer quilate, valendo-se tão-somente de uma solitária convivência com livros e outras publicações.
A solidez do acervo adquirido, nas faixas de trabalho em que operou, consolidou-se tão evidente que o próprio governo estadual o convocou para desempenhar, no serviço público, as funções eminentemente técnicas de cartógrafo. Nessa condição foi ao Rio de Janeiro, em caráter oficial, freqüentar curso de especialização na área, promovido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Ao término da jornada, viu-se escolhido, pela votação dos colegas, para falar em nome de todos na cerimônia final de encerramento do curso. Demonstrou decididamente, assim, ser, além de tocador de sete instrumentos, na orquestra de sua movimentada existência, orador de largo mérito, de verbo fácil e verve apreciada.
Outro dom de Adelino: sua máquina fotográfica funcionou invariavelmente a pleno vapor e a serviço de quem requeresse seus préstimos. Homens, mulheres, crianças, todos tiveram suas imagens reproduzidas de acordo com a técnica vigente além do capricho de verdadeiro artesão. Documentou, para arquivos imorredouros, casamentos, batizados, enterros, cavalhadas, procissões, festas cívicas e sociais. Não se esquecerá que Adelino Roque, nos pendores de suas mágicas de artista, lidou esplendidamente com tintas e pincéis, utilizando-os em telas de caprichada feitura. A matriz de Nossa Senhora da Piedade, de Bela Vista, recebeu dádivas do talento de Adelino, cuja inspiração se ajustou ao ambiente repleto de religiosidade.
Sobre Adelino, escreveu Hélio de Araújo Lobo, sócio correspondente desta casa, citado por José Lobo, seu pai - e dos quais me socorri - palavras adequadas: "Baixo, pálido como um chinês, cabelos encaracolados, testa ampla, andar gingado e lento, cavaqueador de lei, cuja prosa viva e vistosa era disputada por todos os seus amigos. Era enfim Adelino Roque de Souza verdadeiro tipo brasileiro de moleque inteligente, cujos dotes artísticos fizeram dele uma espécie de Aleijadinho de nossa terra."
Efetuo agradecimentos. Inicio-os com um endereço amigo: o da professora Nancy Ribeiro de Araújo e Silva, uma colega de vários anos na Universidade Federal de Goiás, presidente, com todos os méritos, da Academia Bela-vistense de Letras, Artes e Ciências, que, sabedora de minhas ligações humanas e sentimentais com esta urbe, dispensou-me caloroso incentivo para que pleiteasse meu ingresso nesta Academia. Agradeço a Dona Lena Castelo Branco Ferreira Freitas, minha professora na Católica e depois colega na UFG - embora não seja mais velha que eu -, a Gercimon Benedito Gomes, uma de minhas amizades de Bela Vista, e a Walter Carlos Lemes, meu colega de magistratura, integrantes da comissão designada para examinar o meu curriculum, presidida pelo último, e que, diante do parecer de Dona Lena, o achou apto a atender às exigências estatutárias desta entidade. Agradeço a todos os demais acadêmicos, em cujo convívio haverei de curtir horas agradáveis, tanto no relacionamento humano quanto na esfera cultural. Grato, igualmente, às pessoas que compareceram a este ato: familiares, amigos, colegas. Destaco, particularmente, a presença de Ana, minha esposa de mais de meio século.
Rendi-me, de há muito, aos feminis encantos desta amorável cidade, seduzido não apenas pelo acervo arquitetônico de seu passado histórico, mas sobretudo pela bela vista do sítio em que se insere; e mais, ainda, pela hospitalidade e simpatia humana que sua gente manifesta ao visitante. A postura ecológica que apresenta remonta ao termo suçuapara, a corça esperta que palmilhava os esplendores de um cerrado que se perde nas pastagens e nas plantações; corça hoje praticamente extinta, mas que combina com Piracanjuba, lembrando o peixe nobre, de escamas prateadas e ligeiramente marcadas por ondas de arrepios, ora ausente de nossas águas em razão de vorazes investidas predatórias; e antes habitante de nossos rios em cardumes copiosos. Suçuapara e Piracanjuba, nomes representando espécime da fauna terrestre, um; e o outro com vida aquática, em outros tempos quantitativamente exuberantes. Piracanjuba e Suçuapara, cidade vizinhas, a primeira o pouso alto dos tropeiros, carreiros, viandantes; e a última, pousando de dormitório, jamais deixou de ser vista bela, com suçuapara de entremeio, aos olhos de quem contempla. Mas o fato principal, para todas as circunstâncias, é que de ambas as cidades jorra torrencialmente, nos vaso dos laticínios, o sangue branco que se torna fonte viva de riquezas e lordezas.
E aqui me planto, não como o poeta de muitas liras, embora um cavaleiro andante sem Távola Redonda; e circulo por campos e matos, até brejos e pirambeiras; e me refresco, guerreiro fatigado no esforço da caminhada, nas águas amenas do Piracanjuba ou na correnteza menor do Suçuapara; e acompanho, enamorado a "ronda verde dos buritizais".
*Discurso de Posse na Academia Bela-vistense de Letras, Artes e Ciências, em Bela Vista, no dia 28 de junho de 2008.