Uso de cães em pesquisa gera polêmica
Uso de cães em pesquisa gera polêmica (Tribuna do Planalto, 16/08/2008)
João Camargo Neto
O imbróglio que envolve as denúncias contra os procedimentos cirúrgicos feitos em animais na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás (UFG) promete ter novos capítulos. A 15ª Promotoria arquivou a representação contra a utilização de cães no Curso de Cirurgias Urológicas por Vídeo. A discordância com o arquivamento fez com que a presidenta da Sociedade Goiana Protetora dos Animais (Sgopa), Ana Maria de Moraes, recorresse a outras instâncias para tentar reverter a situação. O Conselho Superior do Ministério Público Estadual notificou a promotora de Justiça Marta Moriya Loyola, da área de defesa do meio ambiente, para prestar esclarecimentos sobre o arquivamento. O procedimento é considerado rotineiro quando um promotor arquiva a representação. O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) também encaminhou ofício para obter mais informações sobre o processo. Marta Moriya Loyola tem 15 dias, contados a partir do dia 11, quando retornou de férias, para respondê-lo. O caso será encaminhado a outro promotor do Ministério Público caso o arquivamento seja considerado indevido. Se isso não ocorrer, Ana Maria promete recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF).
Nas últimas semanas, circularam na internet e-mails com imagens de animais maltratados, supostamente nas dependências do campus universitário da UFG. Segundo a presidenta da Sgopa, as fotografias foram feitas e enviadas por acadêmicos de medicina que, temendo retaliações, preferem não se identificar. "Um animal é aberto e fechado várias vezes e por vários alunos. Depois é colocado de volta no canil, junto com os outros animais, com suturas e mais suturas, voltando da anestesia, quando ela não acaba durante o procedimento, urrando de dor", conta. As imagens mostram cães feridos, agonizantes, se canibalizando e mortos. Os animais são oriundos do Centro de Controle de Zoonoses (CCZ) de Goiânia. O MP exigiu que o número de bichos enviados pelo centro seja cem, em vez de 300, conforme solicitado pela instituição de ensino.
Ao recusar a representação, a promotora focou sua justificativa no grau de debilidade dos animais enviados para experimentos, embora não sejam gravemente doentes, já que os cães enfermos também não servem para a realização dos procedimentos cirúrgicos. A dificuldade de adoção, por se tratarem de animais debilitados, é outro argumento constante no relatório. Ana Maria sustenta que a imagem da universidade, do Estado e até do País estão sendo manchados no exterior em função dos experimentos com os animais.
A repercussão atingiu organizações não-governamentais internacionais, como a italiana Organizzazione Internazionale per la Protezione Degli Animali (Oipa), que se manifestou contrária. Ela pondera, entretanto, que os procedimentos são executados não apenas na Faculdade de Medicina da UFG. "A prática é comum na maioria dos cursos superiores da área de saúde", diz. E afirma que há alternativas às cirurgias realizadas nos animais para a aprendizagem dos alunos de medicina. Um exemplo é a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS), que já conta com laboratório que dispensa os métodos condenados pelas sociedades protetoras dos animais.
Para Ana Maria, o fato de usar animais não melhora a qualidade de ensino. Pelo contrário. "Tudo o que os futuros médicos aprendem cortando cães, desaprendem quando precisam operar humanos. Além do mais, com um homem ou uma mulher na sala de cirurgia não é permitido falhar", acredita. Ela acusa a "insensibilidade dos profissionais da área de saúde" como resultado dessa metodologia. "Para não tratarem humanos como se fossem cachorros é preciso dar um banho de civilidade".
Resposta
Em nota de esclarecimento público, o diretor da Faculdade de Medicina da UFG, Heitor Rosa, alega que são inverídicas e improcedentes as denúncias contra a instituição. Ele garante obedecer os critérios da Vigilância Sanitária e do Conselho Regional de Medicina Veterinária (CRMV). "As pesquisas realizadas com animais têm, obrigatoriamente, a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da UFG, que segue as diretrizes do Conselho Nacional de Ética em Pesquisa", diz. Heitor Rosa defende o uso de animais no treinamento para o avanço de técnicas cirúrgicas. "Transplantes de órgãos só foram possíveis de serem utilizados no homem após a experimentação em animais, com protocolos muito bem definidos", ilustra o diretor da Faculdade de Medicina da UFG. "Inadmissível", diz o professor na nota, "é utilizar o homem como cobaia para testar nova técnica cirúrgica", o que ele classifica de prática nazista.
Estudante desmente versão da Sgopa
Uma acadêmica do quarto ano de Medicina da Universidade Federal de Goiás, que preferiu não se identificar, conta que não há nada de anormal na prática cirúrgica realizada pelos alunos do terceiro ano. Segundo ela, não há risco de os animais acordarem porque são sedados antes do início do procedimento. Ela defende a manutenção da prática e enfatiza que se sente mais segura praticando a técnica sumariamente em animais. "Se isso acabasse, seríamos prejudicados. É o único momento em que pegamos em ser vivo antes de partimos para o tratamento com humanos", diz.
Para ela, é a oportunidade única, durante os seis anos do curso, em que vêem na prática, o que não podem fazer no quotidiano profissional com um paciente. "Com bonecos, seria diferente. Eles não correm o risco de morrer na mesa cirúrgica porque não têm vida.
Praticando em animais, damos de cara com os obstáculos", expõe. Ela garante que a faculdade exige que os animais estejam em bom estado de saúde. Outra garantia da acadêmica é de que os animais não sofrem após a cirurgia. "Aplicamos cloreto de sódio na veia deles. Todos são sacrificados na mesa ao fim da aula. Nenhum é retirado vivo da sala. Morrem na hora. E sem dor", conta.
UFG construirá novo laboratório
O diretor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás (FM/UFG), Heitor Rosa, anuncia, ainda sem projeto, a intenção de construir o Laboratório de Habilidades, a ser entregue em até quatro anos. O objetivo de erguer a estrutura foi revelado após a FM tornar-se alvo de críticas de organizações não-governamentais por causa da utilização de animais em aulas práticas do curso. "É um planejamento a médio prazo, à medida que for entrando recurso", informa. Ele adianta que a universidade precisará investir pelo menos R$ 200 mil para a implantação do novo laboratório, que não banirá, no entanto, o uso de animais no curso. De acordo com ele, apenas complementará. "Mesmo assim, muitos procedimentos serão feitos em manequins".
Para Heitor Rosa, um médico não tem condições de transplantar um órgão humano com êxito se não o tiver aprendido em um animal vivo. A mesma defesa ele usa para outras cirurgias consideradas complexas, como a de laparoscopia (procedimento feito por meio de pequenas cânulas de metal que são inseridas no abdômen) ou vesícula, por exemplo. Ele enfatiza que o perfil do médico formado pela Universidade Federal de Goiás é comunitário.
"Desde o início do curso, o estudante passa por unidades da rede pública de saúde, de forma a ficar apto a atender a população", destaca. Heitor afirma que nem todo médico vai ser cirurgião, mas tem de ter noção de prática cirúrgica.
Sem o risco de contaminação
O modelo a ser adotado pela UFG é o da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Famed/UFRGS), que baniu em 2006 o uso de animais nas disciplinas da graduação. Com a construção do Laboratório de Habilidades Cirúrgicas e Técnica Operatória, eles são utilizados apenas para pesquisa da pós-graduação. O resultado do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade) de 2007, publicado no início deste mês, afiançou, na opinião do diretor da Famed, Mauro Antônio Czepielewski, que a instituição de ensino está no caminho certo. Resultados divulgados pelo Ministério da Educação (MEC), com base na avaliação, colocam a Faculdade de Medicina da UFRGS como a melhor entre os cursos de graduação em Medicina e entre os melhores 25 cursos de graduação das áreas que foram avaliadas.
No laboratório, que fica num espaço cedido pelo Hospital de Clínicas, os alunos da Famed têm à disposição material sintético importado para as aulas práticas. Os acadêmicos utilizam manequins, peças anatômicas, sangue falso e tecidos orgânicos, além de equipamentos de informática e sala para aula teórica e prática cirúrgica. "Com esse material, os alunos não precisam mais treinar suturas e outros procedimentos em esponjas e peles de animais mortos, evitando o risco de contaminação", diz o diretor do Laboratório de Habilidades Cirúrgicas e Técnica Operatória, Geraldo Sidiomar da Silva Duarte. A abolição do uso de material biológico vivo ou morto reduziu a zero o risco de contaminação ao qual os alunos eram submetidos. Segundo o diretor, era comum estudantes do internato (dois últimos anos da faculdade) serem contaminados com agulhas e aparelhos similares.
Antes da implantação do Labotecop, a instituição utilizava cães, que depois forma substituídos pro pele de galinha e porco. A implantação do laboratório custou à instituição um investimento de aproximadamente R$ 300 mil. Hoje, não é utilizado nenhum tipo de organismo biológico vivo ou morto durante as aulas. Geraldo Duarte adianta que a próxima etapa será a implantação de técnicas mais avançadas, já que as atuais são básicas, úteis apenas ao ensino de sutura e punção. Ele afirma que o valor é acessível a qualquer universidade brasileira. O material utilizado deteriora menos e é reutilizável, o que gera economia. Para Geraldo, é uma questão de tempo e disposição para alterar o currículo para que outras instituições de ensino acompanhem os passos da universidade gaúcha.
Lei regula uso de animais em pesquisa
A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) aprovou no dia 6 de agosto parecer do senador Inácio Arruda (PCdoB-CE) favorável a projeto que estabelece critérios rigorosos para utilização de animais em pesquisa científica. Trata-se do PLC 93/08, oriundo da Câmara dos Deputados. A matéria considera como atividade científica toda aquela relacionada com ciência básica, aplicada, desenvolvimento tecnológico, produção e controle da qualidade de drogas, medicamentos, alimentos ou quaisquer outros procedimentos testados em animais.
A proposta desconsidera, no entanto , as práticas zootécnicas relacionadas à agropecuária como prática de pesquisa. E determina que os animais somente poderão ser submetidos a intervenções se recomendados nos protocolos dos experimentos que constituem a pesquisa ou programa de aprendizado. O projeto acrescenta ainda que os animais utilizados deverão receber cuidados especiais antes, durante e após o experimento. Entre as recomendações, está a proibição do uso de bloqueadores neuromusculares ou de relaxantes musculares em substituição a substâncias sedativas, analgésicas ou anestésicas.
O presidente da CCJ, senador Marco Maciel (DEM-PE), informou que a matéria, ao ser analisada no semestre anterior pela Câmara dos Deputados, recebeu modificações. Sugestões da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) foram inclusas. O projeto seguiu para análise de mais duas comissões: a de Educação, Cultura e Esporte (CE) e a de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática (CCT). Nas duas instâncias, será votado em decisão terminativa.
Para a bióloga que coordena a didática do Centro de Desenvolvimento de Modelos Experimentais (Cedeme) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Mirian Aparecida Ghiraldini Franco, uma lei específica para ordenar esse tipo de pesquisa contribui para que a prática deixe de ser malvista pela sociedade. "A comunidade científica é totalmente favorável a uma legislação que regulamente o uso de animais, e temos trabalhado arduamente nesse tema. A boa ciência só se faz de forma ética, dentro de padrões rígidos e isso vale enormemente para os testes em animais", diz. "O bom cientista concorda com a criação de normas, regras e limites."
Defensora do uso de animais para experimentos científicos, ela condena o mau-uso empregado por algumas faculdades da área de saúde. "Um aluno que não respeita um bicho dificilmente será um profissional sensível, ético e, com certeza, terá dificuldades de tratar um semelhante que esteja vulnerável", acrescenta. A bióloga cita como modelos de instituições de ensino as universidades de Yale e Harvard, que não utilizam mais animais nas aulas práticas.
Autor dos livros A Verdadeira Face da Experimentação Animal: a sua Saúde em Perigo (Editora Falabicho) e Alternativas ao Uso de Animais Vivos na Educação: pela Ciência Responsável (Instituto Nina Rosa), o biólogo Sérgio Greif acredita que "um dia haverá uma lei que proíba completamente a utilização de animais em experimentos". Para ele, a legislação deve refletir o pensamento da comunidade. "Enquanto a população pensar que precisamos usar animais para experimentos não há por que lutar por tal lei", sublinha.
Sérgio confia que a Constituição banirá de vez a experimentação animal somente quando este sentimento tomar conta da maioria dos brasileiros. (J.C.N.)
A Tribuna do Planalto ouviu dois tarimbados cientistas sobre a polêmica em torno da utilização de animais nas pesquisas científicas e em sala de aula, mas com opiniões opostas sobre os temas . Para o bioquímico Aurélio Vicente Graça de Souza, uma eventual proibição do uso de animais em pesquisa "seria um crime contra a saúde pública". Com opinião divergente, o biólogo Thales Tréz, co-autor do livro A Verdadeira Face da Experimentação Animal (Editora Falabicho), vê um conflito ético na questão: "Sustentar a morte deliberada de animais, mesmo que para finalidades científicas, é incompatível com os novos valores que emergem do pensamento ético contemporâneo". Acompanhe a seguir os principais trechos das entrevistas.
João Camargo Neto
A favor
'A proibição do uso de animais é
um crime contra a saúde pública'
Perfil: Aurélio Vicente Graça de Souza é doutor em bioquímica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pós-doutor em Imunologia de Transplantes pela Escola de Medicina da universidade Harvard, nos Estados Unidos. Atualmente chefia o Grupo de Imunobiologia Vascular, no Instituto de Bioquímica Médica da UFRJ.
O sr. defende a utilização de animais em experimentos científicos? Por quê?
Aurélio Vicente Graça de Souza - O desenvolvimento de novas terapias e a validação de outras tantas ainda dependem exclusivamente de modelos experimentais, que, em sua maioria, utilizam roedores (ratos e camundongos). Quando você vai à farmácia adquirir qualquer composto, saiba que ele foi extensivamente testado em animais antes de ser utilizado por nós, seres humanos. Portanto, considero que uma eventual proibição do uso de animais em pesquisa, seria, antes de tudo, um crime contra a saúde pública.
Há métodos alternativos eficazes?
Uma parcela considerável da comunidade científica vem se mobilizando com o intuito de desenvolver métodos alternativos ou mais conhecidos por nós como o protocolo dos três erres (reduction, replacement, refinement), que, como o nome sugere, visam à redução, refinamento e substituição do uso de animais em pesquisa onde for possível. Isso pode ser feito, por exemplo, na indústria de cosméticos. A Comunidade Econômica Européia banirá a comercialização de qualquer produto da indústria de cosméticos que use animais em seu desenvolvimento já a partir de março de 2009.
O argumento de que alguns medicamentos testados em animais não foram bem-sucedidos em humanos se sustenta?
Isso é mais uma manobra no estilo "cortina de fumaça" muito utilizada pelos fundamentalistas que são contra o uso de animais em pesquisa. A pressão da indústria farmacêutica pela liberação/registro de suas novas drogas com potencial terapêutico é tão grande que isso, por muitas vezes, acelera o lançamento de uma droga sem que a população-alvo seja acompanhada por tempo suficiente.
O organismo animal é fidedigno ao do humano para que o aprendizado de práticas cirúrgicas em um seja aplicável no outro?
Não acredito que alguém que se coloca contra a experimentação animal possa ser considerado um cientista. Alguns modelos simulam muito bem (como suínos, por exemplo) a anatomia humana e devem ser utilizados para o treinamento de práticas cirúrgicas.
É possível testar se uma substância é tóxica apenas com células?
Quando ingerimos uma determinada droga, logo após ser absorvida, ela entra em contato com inúmeros tipos celulares (diferentes tecidos) de nosso corpo. Embora seja possível determinar a toxicidade de uma substância em relação a um tipo celular (o que chamamos de citotoxicidade), in vitro é impossível afirmar o que acontecerá com todo o organismo. Uma dada droga pode não ser tóxica para o seu fígado, mas pode acabar com seus rins. Dessa forma, a análise toxicológica de qualquer substância ainda depende integralmente do uso de modelos animais. Esse é um campo em que temos muito o que inovar e penso que vários testes de toxicologia poderão sofrer mudanças significativas em termos de refinamento e redução do uso de animais nos próximos anos. Mas ainda estamos longe da substituição.
É possível que um dia a tecnologia avance a ponto de acabar definitivamente com os testes em animais?
Sou permanentemente otimista em relação aos avanços da ciência. Há poucas décadas, dificilmente alguém acreditaria que poderíamos usar células-tronco para o tratamento de doenças ou ainda realizar transplantes múltiplos. Mas receio que serão necessários alguns bons anos de estudo para que isso possa ser testemunhado pela sociedade.
Qual é o destino dos animais usados em experimentos? O que geralmente é feito deles?
É importante dizer que a maior parte dos animais experimentais são roedores (ratos e camundongos) e que vivem em condições excelentes, com ração da melhor qualidade, temperatura e umidade controladas, e recebem tratamento veterinário constante. Após a realização dos experimentos esses animais são sacrificados com manobras que são desenvolvidas para minimizar o seu sofrimento.
O uso científico de animais em experimentos não configura maus-tratos?
De forma alguma. Esses animais devem ser respeitados até o último minuto de suas vidas. O verdadeiro cientista deve ser capaz de respeitar esses animais, pois por meio deles caminhamos para o desenvolvimento de terapias que tornarão a nossa vida melhor.
Uma lei específica sobre o assunto tornaria a prática menos malvista?
Essa lei já existe, de autoria de nosso saudoso [médico sanitarista] Sérgio Arouca (1941-2003), que foi deputado federal e presidente da Fundação Oswaldo Cruz. Essa lei estabelece normas e critérios para a criação e utilização de animais em atividades de pesquisa científica no Brasil. Após tramitar por 13 anos em diversas instâncias esse lei sofreu remodelamento substancial graças a um amplo debate capitaneado pela Academia Brasileira de Ciências, que envolveu ainda a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Federação das Sociedades de Biologia Experimental (FeSBE), Colégio Brasileiro de Experimentação Animal (Cobea) e universidades como a USP e a UFRJ.
Denúncias de uso inadequado de animais podem manchar a credibilidade de cursos universitários?
Penso que a criação de um comitê interno de Ética no uso de animais em experimentação deveria, ao meu ver, ser implementado obrigatoriamente em todas as universidades federais que utilizam animais em pesquisa e ensino.
Há algum tipo de prejuízo ético ou psicológico que o uso de animais na educação médica pode causar ao estudante de medicina?
Acredito que antes de utilizar um animal em algum tipo de experimentação, o professor tem como obrigação ética e moral definir junto com sua turma quais são os limites e os deveres de cada um em relação a este objeto. O prejuízo existe quando o docente se exime em definir exatamente essas fronteiras. Não dá para chegar à sala de aula e jogar uma gaiola cheia da ratos em cima dos estudantes. É preciso deixar claro as regras desse ritual, o que pode o que não pode.
É possível ser um bom cirurgião, por exemplo, sem ter aprendido em animais?
Dá para ser um bom jornalista sem saber redigir um bom texto?
Contra
'Permitir é ir contra os valores do
pensamento ético contemporâneo'
Perfil: Thales Tréz é biológo, mestre em Ética Aplicada pela Katholieke Universiteit Leuven, na Bélgica. Professor da Universidade Federal de Alfenas e doutorando em Educação Científica e Tecnológica da Universidade Federal de Santa Catarina. Coordena a ONG InternicheBrasil, que prega o fim do uso de animais no ensino superior.
O s.r é contra a utilização de animais em experimentos? Por quê?
Thales Tréz - Sou totalmente contra, por motivos de ordem ética e biológica e, principalmente, por acreditar no potencial criativo e social da ciência, acredito que esta deva firmar compromisso prático com as emergentes questões colocadas pelo pensamento bioético. Sustentar a morte deliberada de animais, mesmo que para finalidades científicas, é incompatível com os novos valores que emergem do pensamento ético contemporâneo. A ciência deve ter o espírito de acompanhar tais questionamentos e valores, e não simplesmente ignorá-los.
Há alternativas?
Muitas. E para o que ainda não existe, é imprescindível que os pesquisadores se empenhem nesta busca. Enquanto não se perceber a necessidade de inovações no campo da ciência e se insistir em um modelo experimental caduco, os métodos substitutivos não serão nunca alcançados. Mas muito vem sendo desenvolvido, e estas novas tecnologias e abordagens apontam para uma ciência mais responsável do ponto de vista ético e técnico.
O sr. defende que a proibição da utilização de animais em experimento seja feita por meio de lei?
Como educador, acredito mais em um trabalho de conscientização e sensibilização. Mas há ocasiões em que as leis ajudam, se não a acelerar este processo, pelo menos a abrir espaços de discussão na sociedade e na academia.
Que argumentos poderão fazer o meio científico rever seus valores e reavaliar o uso de animais?
São muitos e das mais diferentes naturezas. A avaliação da experimentação animal provoca argumentações de ordem ambiental, biológica, ética, legal, educativa, de gênero, de poder e histórica, para citar algumas. Todas elas encontram-se, na atualidade, muito bem fundamentadas. É uma questão de se informar. A fonte destas argumentações certamente não reside nas bibliotecas de quem trabalha com experimentação animal.
Quais argumentos comumente difundidos por militantes dos direitos animais não são se sustentam?
Colocados numa balança, observa-se que os argumentos que mais atendem a uma lógica de mercado, a uma orientação conservadora da ciência, a um status livre de valores do fazer científico, dentre outros, são os que menos se sustentam atualmente.
Há casos em que os experimentos em animais são indispensáveis?
Acreditar em modelos indispensáveis à ciência é desacreditar em seu potencial de criação e negar a dimensão dinâmica da ciência.
Por que tantos pesquisadores dizem que os testes animais de remédios são cruciais?
Dentre outros motivos, porque foram formados dentro deste paradigma. Seus professores os ensinaram assim e, assim, o repetem. Muitos possuem uma longa trajetória e trabalham há anos com o modelo animal. Assim, o modelo animal é crucial para a manutenção de suas profissões enquanto cientistas e para suas produções bibliográficas. Negar o modelo animal, nestes casos, é negar sua própria carreira.
Se os experimentos em animais fossem banidos, hoje, o Brasil teria tecnologia suficiente para substituí-los ?
A pesquisa com animais é muito dispendiosa. Acabar com os experimentos em animais reservaria fundos para modernização de laboratórios e capacitação de pessoal. Mas tenho claro que, para mim, o crucial neste processo todo não é o como fazer, mas o porquê fazer esta mudança. Enquanto isso não estiver claro, qualquer lei acabará como as de Florianópolis e Rio de Janeiro: na gaveta.
O uso de animais em experimentos científicos configura maus-tratos?
O uso de animais não acontece apenas na condição de anestesia, mas começa já na criação (biotérios) e transporte dos animais. É um processo que envolve muito sofrimento. Por isso dizer que não há maus-tratos quando o procedimento é feito com todo cuidado da anestesia é ignorar não apenas este processo, como também os possíveis processos inconscientes de angústia e estresse antes, durante e após as intervenções.
É diferente matar um animal para comer e matar um animal para experimento?
Há de se considerar todas as variáveis em jogo. Do ponto de vista ético, ambas as mortes são moralmente condenáveis quando não há, em definitivo, outra solução. Para o consumo de carne é evidente o caminho alternativo. Para a experimentação animal, o caminho ainda precisa ser mais explorado.
Denúncias de uso inadequado de animais em faculdades da área de saúde podem manchar a credibilidade dos cursos?
A experimentação animal com fins educativos é especialmente injustificável, uma vez que visa trabalhar com conceitos e habilidades já conhecidas - não acrescentando conhecimentos "novos". Desta forma, seja que universidade for, este tipo de procedimento deve ser questionado, combatido e denunciado.
Que tipos de prejuízos éticos e psicológicos o uso de animais na educação médica pode causar ao estudante?
Muitos estudos acadêmicos vêm sendo publicados sobre estes impactos, demonstrando sérios prejuízos. Do ponto de vista psicológico, o estudante é dessensibilizado nos procedimentos. Se torna frio e apático perante as simulações com seus primeiros pacientes animais - que invariavelmente acabam mortos. Do ponto de vista ético, ele transforma sujeitos em objetos. [Emanuel] Kant alertou para a ponte entre a crueldade com animais e a crueldade com seres humanos. Do ponto de vista técnico, estudantes de medicina devem aplicar seus conhecimentos aos humanos, e não a animais, que são diferentes do ponto de vista biológico, anatômico e fisiológico. Da mesma forma que seria um absurdo um paciente humano consultar um veterinário sobre sua enfermidade.
É possível ser um bom cirurgião, por exemplo, sem ter aprendido em animais?
Assim se formam cirurgiões na Inglaterra, em 90% das escolas de medicina dos Estados Unidos e em muitas outras instituições mundo afora. Nestes países e instituições, a experimentação animal existe na pesquisa, mas no ensino já foram substituídos. Na Inglaterra, desde 1886.