Alguns números da eleição de vereadores
Alguns números da eleição de vereadores (Diário da Manhã, 18/08/2008)
Ari Ferreira de Queiroz
juiz de Direito, professor de Direito Constitucional da Universidade Católica de Goiás e do IEPC - Instituto de Ensino e Pesquisa Científica, coordenador do Curso de Direito da Faculdade Sul-Americana
Eleger-se vereador não deve ser fácil. Todo mundo tem um primo, amigo, colega ou outro parente candidato, e todos os candidatos acreditam ser eleitos, por confiarem nos primos, amigos, colegas ou outros parentes a quem pediram voto e obtiveram o “conte comigo” ou “minha família vota em você”. Mesmo não acreditando nessas promessas, os candidatos acreditam e, de fato, devem acreditar para não se desestimular ante a dura empreita a ser enfrentada, de dar inveja aos vestibulares ou concursos mais concorridos. O candidato a futuro bacharel em Direito pela Universidade Federal de Goiás enfrenta a concorrência de cerca de 20 outros pretendentes para a mesma vaga, enquanto vestibulando da maioria das faculdades particulares sequer enfrenta concorrência, por ser maior o número de vagas que o de interessados em uma vaga. Por seu turno, cada candidato a vereador em Goiânia enfrentará, no próximo 5 de outubro, a concorrência de cerca de 20 outros, alguns deles, “bom de voto”. O candidato a prefeito viverá dia mais tranqüilo, tanto pela certeza da vitória como da derrota, sendo apenas quatro candidatos para a mesma vaga. Quanto aos vereadores, as chances são maiores nos partidos ou coligações pequenos, em que o quociente partidário também é menor.
Nem sempre o eleitorado entende por que algum candidato com mais votos não é eleito, enquanto outro, como votação inexpressiva, acaba se tornando representante do povo. Tomando como exemplo a eleição de 2004, o então candidato Nelson Cruz, do PSB, conseguiu se eleger vereador com 2.588, enquanto outros, com votação sensivelmente superior, ficaram para a próxima, assim como o hoje deputado estadual Fábio Sousa sagrou-se vencedor com 9.374, quantidade talvez suficiente para eleger-se para a uma vaga na Assembléia Legislativa. Para compreender o que se passa é preciso distinguir os sistemas eleitorais, assim considerados os critérios legislativos utilizados para eleger os representantes do povo. No Brasil, utilizando o sistema majoritário para as eleições de chefe de poder executivo – prefeito, governador e presidente da República – e senador, e sistema proporcional, para as eleições de vereadores e deputados estaduais e federais. Pelo sistema majoritário, o mais votado será o vencedor, mesmo sua diferença sendo mínima ou ínfima perante o segundo colocado.
Pelo sistema proporcional, o eleito será conhecido a partir de cálculos matemáticos em que se estabelecem os quocientes eleitoral e partidário, de forma que nem sempre o vencedor será o candidato mais votado. Para ter candidato vencedor é necessário ao partido ou coligação alcançar um número mínimo de votos, variável em cada eleição conforme o número de eleitores efetivamente votantes. Segundo esse sistema, a votação individual de cada candidato não tem grande valor, devendo se reunir à dos demais da mesma legenda para aumentar a chance de eleição, por isso a legislação permite aos partidos lançarem vários candidatos para cada vaga a ser preenchida. A lei das eleições autoriza os partidos lançarem candidatos até uma vez e meia o número de vagas a preencher. Em um município com nove vereadores, cada partido poderá lançar 14 candidatos, ou o dobro, 18, no caso de coligações. Pelo sistema proporcional, busca-se assegurar representativade a todos os segmentos sociais, inclusive aos minoritários, em geral representados por partidos oposicionistas radicais que pregam o fim do capitalismo, publicização de todas as atividades ou gratuidade de todos os serviços, entre outras questões variáveis conforme o momento político.
A pedra angular do sistema proporcional é o quociente eleitoral, que delimita o número mínimo de votos que o partido ou coligação deve alcançar para eleger um candidato; o quociente partidário, por sua vez, representa o número de candidatos que cada partido que alcançar o quociente eleitoral elegerá. Embora não seja difícil, um exemplo facilita ainda mais o cálculo do quociente eleitoral. Supondo eleição municipal de colégio eleitoral com 45.934 eleitores, em que oito partidos concorram à Câmara de Vereadores para eleger 13 vereadores, cada um com o número máximo de candidatos permitido pela legislação, deverão ser realizadas pelo menos quatro operações. Na primeira, encontra-se a quantidade de votos válidos; na segunda, o quociente eleitoral; na terceira, o quociente partidário; na quarta, distribuem-se as vagas remanescentes. Apurados os votos e considerando 5.420 eleitores faltosos, restam 40.514 votos, assim distribuídos por partido: A = 9.223; B = 6.090; C = 4.948; D = 12.166; E = 1.323; F = 2.230; G = 3.160. Foram ainda 200 os votos em branco e 173 os nulos, restando 39.513 votos válidos que, divididos pelo número de vagas, geram quociente eleitoral de 3.039 votos, desprezada a fração inferior a meio ou arredondada para um, se maior. Isto quer dizer que para eleger pelo menos um vereador, a soma de votos de todos em conjunto deve alcançar essa votação, estando automaticamente fora de cogitação os partidos “E” e “F”, que ficaram abaixo.
Com isso, ainda tomando o mesmo exemplo, o sistema proporcional leva ao cálculo do quociente partidário, assim considerada a quantidade de vagas pertence a cada partido, dividindo-se sua votação pelo quociente eleitoral, sempre desprezando a fração, seja menor ou maior que meio. Em um primeiro momento, o partido “A” conquistará três vagas, cabendo ao partido “B” duas, à coligação “D”, quatro, e mais uma vaga para os partidos “C” e “E”, totalizando 11 vereadores eleitos, restando ainda duas vagas a serem preenchidas, as quais serão distribuídas, na quarta operação, aos partidos que apresentarem a maior média projetada de votos por vereador eleito. Para tanto, o sistema proporcional leva a um raciocínio hipotético, “imaginando” qual seria a média de votos por candidato em cada partido ou coligação se lhe acrescentasse uma vaga a mais do que a obtida pela fórmula normal. Se restar apenas uma vaga, será acrescentada ao partido que, tendo alcançado o quociente partidário, apresenta a maior média de votos por vereador eleito; se restarem duas vagas, repete-se a operação. No mesmo exemplo, a maior média ficou com o partido “C”, com 2.474 votos, a quem será acrescentada uma das vagas remanescentes, e a outra, repetindo-se a operação, à coligação “D”, com média de 2.433 votos por eleito, podendo ser de qualquer partido que a integre.
Tomando como base a eleição municipal de 2004 em Goiânia, 27 partidos – alguns coligados – lançaram candidatos a vereadores e juntos conseguiram somar 633.036 votos válidos. Dos 27 partidos, 13, com 83.955 votos, não elegeram nenhum candidato, merecendo destaque o PHS, Prona e PTB, que somaram 40.627 votos, mas mesmo assim não elegeram nenhum de seus candidatos. Os outros 14 partidos somaram 529.655 votos, mas com apenas 172.274 elegeram os 34 vereadores, sendo extremos o PSDB, com 54.377 e oito vereadores eleitos, representando média de 6.797 votos, e o PSB, que elegeu dois com apenas 7.197 votos no total e média de 3.598 por eleito.
Vale repetir: Goiânia tem mais de 1,3 milhão de habitantes e oitocentos e tantos mil eleitores, mas bastaram menos de duzentos mil votos para eleger nossos representantes na Câmara Municipal. Visto sobre outro prisma, os votos de menos de vinte por cento do eleitorado prevaleceram sobre os de oitenta por cento; a minoria prevaleceu sobre a maioria. O sistema está errado e injusto. Além de possibilitar a eleição de quem tem (bem) menos votos em detrimento de quem apresenta votação mais consistente, mas talvez não tenha “escolhido” o melhor partido para se candidatar, permite que a minoria se sobreponha à maioria.
Agrava-se o problema quando o eleitor “descobre” não ter sido suficientemente livre para votar. Não quero dizer ter sido coagido, nem questionar a lisura do pleito, senão apenas a lógica do sistema, cujo erro começa em fase anterior, ao monopolizar nos partidos políticos a escolha de candidatos sem participação do eleitorado. Lecionando Direito Eleitoral na Universidade Católica, perguntei aos meus alunos se eram livres para votar e, como era de se esperar, a resposta foi positiva. Insisti se realmente votavam nos candidatos de suas preferências e, mais uma vez, a mesma resposta. Continuei perguntando se, em tese, votariam em outros candidatos, e, claro, a resposta continuou afirmativa. Concluí, então, dizendo não serem tão livres, pois não votamos exatamente nos candidatos de nossa preferência, senão em um daqueles postos à nossa disposição pelos partidos políticos.
Em resumo, o grande eleitorado do País acaba se resumindo a poucos caciques partidários que prevalecem sobre as convenções, a quem cabe dizer ao eleitorado quem serão os candidatos em cada eleição, privando-os da efetiva liberdade de escolha.