As múltiplas, perigosas e desconhecidas faces da doença bipolar
As múltiplas, perigosas e desconhecidas faces da doença bipolar (Diário da Manhã, 26/08/2008)
Até muito pouco tempo atrás, a psiquiatria reconhecia apenas a “face mais simples” da doença bipolar: aquela da chamada “psicose maníaco-depressivo”. Como o nome diz, esta se caracteriza por intensos e graves transtornos do humor, tanto para o lado da exaltação quanto para o lado da depressão. Hoje se sabe que as coisas, infelizmente, não são tão simples assim: além da euforia e da tristeza, há muitos outros sintomas, até então desconhecidos, da doença. Em primeiro lugar notou-se que a exaltação não se dá só na forma de euforia, mas também na forma de outros muitos comportamentos : compras excessivas, jogo excessivo, sexualidade excessiva, gastos excessivos, abuso de alcóolicos e de drogas, excesso de atividade laboral, de produtividade artística, excesso de busca de prazer, descuidos sazonais e temporários com a família, com o trabalho, com as responsabilidades.
Recentemente, por exemplo, atendi duas garotas, adolescentes, bem jovens, cujo principal sintoma era a “porralouquice”: saíam demais, festas demais, namoros demais, transas demais, começaram a fumar, beber, ir para beira de rios, dormir fora de casa, ficar viajando de cidade para cidade em garupas de motos, com grupos de jovens errantes; abandonaram, de certa forma, a família, escola, obrigações, religião etc. Esta é, por assim dizer, a “face psicopática”, “delinqüencial” ou toxicomaníaca da doença.
Este “excesso de atividades”, muitas vezes, pode fazer confundir a doença bipolar com o transtorno de hiperatividade. Isto é tão mais fácil na medida em que, hoje em dia, o início do transtorno bipolar está cada vez mais precoce. Como a família descreve que o adolescente era agitado desde pequeno, todos pensam que se trata de uma hiperatividade, quando, na verdade, o problema é da bipolaridade.
Outra manifestação muito comum, e desconhecida, da bipolaridade precoce é a depressão grave na infância. Eu mesmo já atendi crianças deprimidas com sete anos de idade, cuja evolução posterior mostrou-se bipolar. A negligência deste transtorno fica por conta de mães, professores e profissionais não-médicos que julgam que o problema, por se tratar de uma criança, é puramente condicionado por fatores psicológicos ou sociais.
Não só na adolescência, mas também na fase adulta, é muito comum a manifestação “psicopática”, alcóolica e toxicomaníaca da doença. São pessoas que, à primeira vista, não passam de “drogados, mimados, inconseqüentes”, sempre em busca de prazer intenso, muitas vezes um prazer exagerado, inconseqüente e até pervertido (por exemplo, é comum no adulto jovem com este tipo de problema a manifestação de ninfomania na mulher – desejo e entrega sexual exagerada – e de perversões hipersexuais no homem: bissexualidade, pedofilia, satirismo, poligamia etc.).
Outra face muito desconhecida da bipolaridade são os transtornos de ansiedade e depressivos. É muito comum o início ou a manifestação da doença apenas como uma fobia social (retraimento, isolamento, medo de multidão, de sair de casa etc.), como um transtorno de ansiedade generalizada (pessoa sempre “tensa”, “estressada”, “agitada”, preocupada em excesso) ou como transtorno de pânico. As depressões ligadas à bipolaridade são as mais perigosas, pois seu índice de impulsividade é muito grande, levando facilmente ao suicídio. O que é grave no depressivo bipolar é que ele tem oscilações muito rápidas de humor e nestas oscilações ele pode, repentina e desavisadamente, cometer um ato de suicídio. São aqueles casos onde todo mundo acha que a pessoa está bem, até alegre, e “ela vai ali para o canto e se mata”. São depressões silenciosas, das quais, ao contrário das “depressões neuróticas”, o paciente se queixa pouco, às vezes nem se diz deprimido. Por vezes, é uma depressão que se manifesta apenas na forma de uma irritabilidade aumentada, uma intolerância, agressividade e tendência à passagens-ao-ato impulsivas.
Outras vezes, são depressões que se manifestam de forma psicótica. Recentemente, atendi um adolescente que ficou três anos trancado em um quarto, debaixo de uma coberta, achando que seu rosto estava deformado, que seus pés eram grandes demais, que suas unhas eram horríveis (inclusive, passava o tempo todo arrancando e sangrando as unhas do pé). Este adolescente foi tratado muito tempo como esquizofrênico, mas na verdade se tratava de uma forma delirante da depressão bipolar.
Muitos adolescentes e adultos jovens também recebem o diagnóstico irremediável de esquizofrenia depois de um primeiro surto psicótico, surto este que, de fato, é muito parecido com uma esquizofrenia, confundindo mesmo psiquiatras muito experientes. São psicoses que se manifestam abruptamente, com perplexidade do paciente, atitudes de terror, medo intenso, “sustos”, delírios de perseguição, delírios de influência, alterações do pensamento, insônia, falta de apetite etc. O que é grave é que, muitas vezes, estes pacientes recebem medicação para esquizofrenia durante anos, acabando por lesar seu cérebro (quando se medica erradamente um bipolar – ou seja, como se ele fosse um esquizofrênico – há um risco aumentado de se causar lesão cerebral – denominada de discinesia tardia – em decorrência do tratamento equivocado).
Outra manifestação muito comum e desconhecida da bipolaridade é a querelância e a erotomania. Na primeira, o paciente se torna um “cri-cri”, pega no pé de alguém, denuncia, fica com “idéia fixa” em relação àquela pessoa, àquele fato, leva na Justiça, não deixa a pessoa em paz – é a isto que se chama, em psiquiatria, de “querelantes” (aqueles sempre em busca de “querelas”, brigas, desavenças continuadas no plano judicial, afetivo, político, econômico). São pessoas que têm uma energia enorme para gastar em pendências que os outros, os normais, simplesmente “deixam para lá”. Um tipo de “pendência” como esta é aquela que se manifesta no plano afetivo-sexual, pessoas que se “encasquetam” com a outra, ficam obcecadas, e ficam “atazanando”, assediando, propondo romances, coisas eróticas, casamentos, tudo isso porque botaram na cabeça que aquela pessoa lhes deu bola, que há “algo profundo entre eles”, que é coisa de “química”, de “outra encarnação”, que “aquela pessoa tem de ser dela e de mais ninguém” etc.
As obsessões na bipolaridade não se restringem a isto, de modo que a doença pode se manifestar até na forma de um transtorno obsessivo-compulsivo (ao contrário do transtorno obsessivo-compulsivo verdadeiro, cuja história é a de uma obsessão contínua, crônica, a evolução do bipolar “pseudo-obsessivo” é feita por fases, por melhoras e por pioras, por “épocas do ano”, além de outros sintomas comuns da bipolaridade, tais como a depressão e a exaltação que podem acompanhar a obsessão nesses casos).
A lista de manifestações “traiçoeiras” da bipolaridade é enorme e não caberia aqui (inclusive, a genialidade pode se dever, em alguns casos, a ela). Vamos terminar citando uma última: uma das mais dramáticas é a daquelas pessoas que chegam ao hospital tidas como “possuídas”, chegam como “caso de exorcismo”, chegam se dizendo o “diabo”, “a pomba-gira”, “exu”. Outros chegam dizendo-se possuídos por demônios de outro sexo, íncubos e súcubos. Uma de nossas pacientes, muito jovem, nessas fases dizia-se, além de possuída por vários demônios, também possuída pelo espírito do lesbianismo: dizia-se apaixonada por mulheres, com intenso desejo sexual por elas etc. Basta tratar-se a doença bipolar para que esses sintomas, que tinham aparecido depois de uma fase normal do desenvolvimento, desapareçam.
Marcelo Caixeta, da Universidade Federal de Goiás (UFG), é médico pós-graduado em Psiquiatria pela USP e pela Universidade de Paris XI e é o atual diretor do Instituto de Psicologia Médica, onde também, como consultante em Psicologia Médica, exerce atividades clínicas e psicoterápicas (terapia familiar). Ex-professor de pós-graduação em Psicologia junto à UniCatGO