A crueza do sublime
A crueza do sublime (O Popular, 02/10/2008)
Amor em Cinco Tempos, em cartaz na cidade, aborda as dificuldades da relação amorosa na sociedade atual
Rodrigo Cássio
Especial para O POPULAR
O filósofo alemão Immanuel Kant caracteriza o sublime como uma grandeza que nos ultrapassa. Para o sujeito que experimenta a presença do mar, por exemplo, a sensação é de arrebatamento, de pequenez. O efeito produzido nessa experiência serve para reconhecermos o sublime.
Em Amor em Cinco Tempos, filme em cartaz no Cine UFG, inaugurado recentemente no prédio da Faculdade de Letras, no Câmpus Samambaia, o cineasta francês François Ozon apresenta a experiência amorosa relacionando-a ao sublime. Para tanto, escolhe, justamente, o mar como um espaço simbólico.
Entendido assim, não é casual que o mar seja o ambiente do primeiro encontro do casal de protagonistas. É no mar que o desejo se mostra, ainda que dissimulado. É nessa experiência do sublime que o desejo calcula os seus passos, ao mesmo tempo cautelosos e desmedidos.
Mas, para chegar a essa analogia, Ozon exige do espectador uma série de predicados. É necessário observar os desenlaces antes das causas, e somente a partir deles avaliar as condições de existência de um amor sublime. Assim, o termo perde o seu significado comum e se aproxima ao de Kant: uma grandeza que, ao mesmo tempo, encanta e intimida.
Amor em Cinco Tempos é uma seleção de cinco momentos da vida de Marion (Valeria Bruni Tedeschi) e Gilles (Stéphanie Freiss), narrados no caminho inverso, isto é, desde a separação do casal até o primeiro encontro. O sentir está carregado de uma crueza realista, nada romântica, que força a reflexão sobre o que o tempo fez de nós, e o que nós podemos fazer a partir disso.
Ruptura
A segunda seqüência do filme, por exemplo, quando Marion e Gilles dividem a cama pela última vez, opera como um elemento deflagrador da ruptura com o imaginário romântico. Não por acaso, o momento vem depois do processo de divórcio. Há um visível esforço de conciliação das personagens com aquilo que elas esperam de si mesmas. Esforço que só não é completamente vão porque a ocasião é concluída com uma pergunta sem resposta, com o silêncio e o olhar de Marion que ignora a sua própria imagem no espelho – a ausência de um “sim” ou de um “não” é sempre mais contundente quando o que está em pauta é a possibilidade de ser.
Invertendo a apresentação dos eventos narrados, Ozon destitui a continuidade do filme clássico em nome de um impacto diferente no espectador. Aqui, a imagem não é chocante no sentido do cinema de gêneros, que aborda espetacularmente o tema amoroso, por exemplo, na “comédia-romântica” ou no “drama”. O que ocorre não está subjugado à velocidade do que é visto. Não há exigência por uma simplificação da trama, nem pela dispensa do espectador como observador atento, partícipe consciente na definição do sentido – o que também não significa tratar-se de um filme “difícil” para os que gostam de entrar, sem sobressaltos, no mundo da representação.
Tributário de André Bazin, importante crítico francês, Amor em Cinco Tempos é marcado pelas contemplações, com planos-seqüências que exploram o que é visto a fim de permitir que as ambigüidades do real se manifestem. Nesse sentido, também como linguagem, a aptidão para um enfrentamento do amor sublime se manifesta.
O sentimento que mobiliza as personagens é sempre ambíguo, e a pergunta, em última instância, recai sobre as condições de uma união conjugal em nossa época, herdeira das revoluções sexual e feminista, ambas representadas com ênfase.
Por um lado, está em cena a mulher que conquistou o direito da autodeterminação, emancipando-se de uma submissão histórica ao sexo oposto – o que é tema de filmes oportunos para um contraponto, como o melodrama O Piano (Jane Campion, 1993) ou o brasileiro Desmundo (Alain Fresnot, 2002). Por outro lado, também a masculinidade não é mais a mesma, e entra em crise o protótipo do homem como um líder de família, um pai seguro e sempre confiante na sua própria autoridade – esta, agora, revela-se uma fonte de desconforto.
Escapando do óbvio, Ozon procura nas mudanças de comportamento aquilo que não foi previsto para nenhum dos gêneros. Os conflitos parecem inevitáveis, à medida que a estrutura dos relacionamentos afetivos insiste em ser a mesma – daí o casamento, em seu formato tradicional, como problema-chave da obra.
A lógica da narrativa tem em vista os excessos da fatura: junto com a liberdade sexual, desponta a incredulidade nos compromissos, relativizando velhas condutas em função da mera satisfação egoísta; junto com o recuo do macho da sua condição de guia, vêm à tona as carências da mulher que sente o abandono, em situações de maior exigência emocional, para as quais o suporte masculino nunca foi, de fato, dispensado.
François Ozon é um dos diretores notáveis do cinema atual, por forçar um diálogo original com diferentes tradições cinematográficas. Em sua trajetória, o realismo absorto de Amor em Cinco Tempos pode ser associado ao seu filme posterior, O Tempo que Resta (2005), para o qual legou a abordagem densa de temas simultaneamente universais e contemporâneos.
Em sua última obra, Angel, de 2007, a ameaça de um flerte com o melodrama fácil acaba resultando em uma experiência maneirista, que responde à extravagância pop de um Almodóvar com a precisão de um Fassbinder ao lidar com o exagero. Trata-se, assim, de um cinema a ser visto e refletido, tanto por seus temas quanto por suas formas.
Rodrigo Cássio é mestrando em Comunicação pela UFG