O mundo e a crise fabricada
O mundo e a crise fabricada (Diário da Manhã, 14/10/2008)
O mundo está às voltas “com uma das maiores crises econômicas da história”, na visão de alguns analistas.
Observadores especializados lembram que, desde o século XVII, todas as crises econômicas mundiais surgiram a partir de uma bolha. Bolha remete à idéia de fantasia, miragem, busca do miraculoso, em contradição com a realidade.
Significa que o monstro que gerou essa crise de proporções imprevisíveis começou em 2001, nos Estados Unidos, cuja economia é vista como “o motor do mundo”. Alan Greenspan, à frente do Federal Reserve (o Banco Central norte-americano), começou a desenvolver uma política de “estímulo à economia” com uma notória injeção de dinheiro fácil. Derrubou a taxa de juros de 6% ao ano para 1% ao ano.
A conseqüência prática dessa superoferta de crédito foi que o valor das moradias dobrou e levou as empresas de crédito a emprestar sem as tradicionais garantias de mercado, com base em “inovações do mercado financeiro”. A fantasia (aí tem-se plena conotação de bolha) movimentou US$ 1,5 trilhão e estimulou os bancos a movimentar muito mais dinheiro do que sua capacidade normalmente permitia ou recomendava.
Com os preços das casas caindo no mercado imobiliário, os endividados proprietários deixaram de pagar as prestações. Sem qualquer garantia ou lastro para ancorar essas operações, tudo veio abaixo, começando o monumental efeito dominó.
É pertinente afirmar que a crise foi fabricada nos Estados Unidos no eixo de uma política de crédito irresponsável. Porém, ao contrário do que o presidente Lula tem proclamado, com certo ar populista, essa não é apenas “uma crise dos americanos”. É também relevante considerar que esse furacão monetário tem em seu epicentro a ganância dos especuladores do capital.
No primeiro momento chegou-se a imaginar que a considerável injeção de nada menos que US$ 700 bilhões de dinheiro público americano na salvação de bancos e outras empresas falidas fosse pelo menos desacelerar o furacão, evitando a debandada de capital de um para outro lugar, o que tem acontecido em um piscar de olhos.
De nada adianta o presidente Lula buscar o alheamento do Brasil frente ao furacão cujo olho surgiu em terras norte-americanas, situando o País como uma espécie de ilha “imune à crise deles”. A postura peca pelo caráter excessivamente primário que desconhece o fato de que o Brasil integra um mercado globalizado com o qual mantém fortes relações (inclusive de dependência econômico-financeira e comercial).
Um exemplo de que, apesar de haver surgido com uma bolha, a crise é real, são alguns sintomas, igualmente palpáveis, como o fato de que o mercado imobiliário brasileiro já reformulou suas metas internas, uma vez que, para investir em empreendimentos novos, necessita recorrer a empréstimos externos. Isso para não mencionar a realidade de cidadãos que, devido à repentina alta do dólar, tiveram de rever suas pretensões de fazer turismo lá fora ou adquirir produtos cotados em moeda verde.
Se você que lê essas mal alinhavadas linhas não entende a origem ou dimensão dessa crise, não se preocupe: renomados professores de economia se confessam também impotentes diante desse vendaval que assola as economias do mundo.
Essa realidade abre espaço para especulações várias, como essa de conotação leiga, o que não significa alheamento ou indiferença.
Na verdade, imagina-se que essa crise, a primeira de grande porte deste século, traz consigo a vantagem de pôr em xeque os velhos pressupostos da economia política, testar antigas teorias, reafirmando-as ou atirando-as na lata de lixo da história.
Entra em cena a batalha entre keynesianos (seguidores de John M. Keynes, 1833-1946) e liberalistas (mais recentemente neoliberalistas) ou monetaristas. Os primeiros recomendam a intervenção do Estado, com as políticas monetária e fiscal, com vistas à estabilização da economia. É o que os Estados Unidos e outros países vêm fazendo como forma de encontrar antídotos para a crise.
Na outra frente estão os monetaristas, seguidores de economistas clássicos, que defendem que o Estado não deve intervir na economia, pois o próprio capitalismo continha os mecanismos eficientes de auto-regulação.
A grande crise de 1929 demonstrou que essa suposta “mão invisível” e reguladora do capitalismo era uma teoria mais furada que peneira.
O mais notável dos monetaristas foi o norte-americano Milton Friedman, vencedor do Nobel de Economia de 1976, morto em novembro de 2006, aos 94 anos. A ele se atribuiu a frase: “Não há almoço grátis”, apesar de o próprio Friedman ter revelado que não a inventou, embora a tenha citado em seus artigos.
Para quem duvida dos efeitos reais dessa onda mundial, é bom pensar que as gigantes General Motors e General Electric, dois centenários símbolos do capitalismo americano, correm riscos de sucumbir.
Além de pôr à prova velhas teorias e conceitos amplamente difundidos nos compêndios econômicos, a presente crise serve para testar alguns princípios criados por Karl Marx na avaliação crítica que fez do capitalismo. Assim, como afirmaram Marx e Engels, a morte é a negação da vida e faz parte da própria vida; o capitalismo, como toda formação social, traz consigo o germe de sua própria destruição.
Não significa imaginar que o capitalismo esteja morto, da mesma forma que, precipitadamente, o pensador Francis Fukuyama tenha proclamado “o fim da história”, com a derrocada da União Soviética, em 1989.
No caso de buscar a essência e o significado dessa nova configuração do capitalismo, vale lembrar que o cenário atual é de um capitalismo de feição bem diversa daquele objeto de análises que se arrastam há décadas. Um capitalismo cujos poderosos tentáculos se ancoram na tecnologia e em tudo mais que ela representa em um mundo globalizado que abriga e realimenta vorazes especuladores.
Antônio Lisboa é jornalista formado pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e pós-graduando em Comunicação Pública pela Escola Superior de Marketing (ESPM)/ Escola de Governo de Goiás