Memórias de um gênio em transe

 

Memórias de um gênio em transe (Diário da Manhã, 09/11/2008)

Raphael Silveira
Especial para o DMRevista

Hoje, excepcionalmente, não vou escrever sobre nenhuma estréia do circuito comercial de cinema da cidade. Abro essa exceção por um bom motivo. Aliás, dois. O primeiro se deve à bela iniciativa dos estudantes da Universidade Federal de Goiás (UFG), por conduzirem o interessante Perro Loco - Festival de Cinema Universitário Latino-Americano, em sua segunda edição, que termina hoje. O segundo motivo foi a oportunidade de assistir, pela primeira vez, ao documentário Rocha que Voa, dirigido por Eryk Rocha, em 2002, um ensaio poético em homenagem ao cineasta Glauber Rocha, o pai que mal conheceu.

Quando Glauber Rocha morreu, em 1981, Eryk tinha apenas três anos e morava na Europa com sua mãe, a fotógrafa e cineasta colombiana Paula Gaitán. Logo, a formação cultural de Eryk estava, desde o berço, impregnada pelo olhar cinematográfico. E o garoto não decepcionou. Ao contrário, fez jus – literalmente – às veias cinematográficas que herdou dos pais e nos presenteou com o belo Rocha que Voa, estréia de Eryk na direção de longas.

Na terra de Fidel Castro, Eryk deparou-se com os vestígios da rápida, porém marcante passagem de Glauber por Havana, entre 1971 e 1972. Esse período é um dos menos conhecidos da biografia do gênio do Cinema Novo. Eryk andou pelas ruas da capital cubana e colheu impressões e depoimentos de várias pessoas que conviveram com Glauber.



Estilo
Embora o longa se apresente como um documentário, Eryk Rocha não segue à risca os cânones do estilo. Longe disso, o diretor não faz o mero papel de repórter sobre os anos de exílio do pai, mas apresenta um estilo próprio, vigoroso, que lembra muito o do próprio Glauber. Rocha que Voa é composto por um mosaico de imagens e diálogos, que se entrelaçam de maneira aparentemente caótica e desordenada, mas que tecem um fio narrativo poético e com valor informacional.

Em Rocha que Voa, vemos um Glauber inspirado, ativo, mobilizado. O cinema, para ele, tinha, naquela época, uma importância fundamental no processo de unificação artística, política e cultural da América Latina e do Terceiro Mundo. Nos anos 70, o embargo dos EUA a Cuba era uma realidade dolorida e se os recursos materiais eram escassos, nas ruas de Havana transbordava o espírito coletivo de solidariedade. A presença de Glauber nesse contexto despertaria toda uma geração de cineastas cubanos, que assumiria sua condição latino-americana, julgando-a mais autêntica do que a influência socialista-soviética.

O manifesto de Glauber Rocha – falado em um portunhol rude – sobre o papel dos intelectuais na sociedade permeia boa parte do filme. Para ele, os “intérpretes” da sociedade deviam integrar-se a ela, abdicando da condição privilegiada de que gozam no capitalismo, e agir como homens que pensam e produzem para a coletividade.

Um dos momentos mais tocantes de Rocha que Voa é o depoimento de Maria Tereza, a namorada de Glauber na época, filmado com a dose certa de emoção, sem cair em sentimentalismos baratos. A paixão de Glauber pela vida e pelo cinema está presente no filme, e Eryk Rocha revela talento ao expor, na tela, o universo glauberiano sob a forma de um apaixonado manifesto, em linguagem contemporânea.