Decreto míope
Decreto míope (Diário da Manhã, 09/11/2008)
Maria do Rosário Cassimiro
Maria do Rosário Cassimiro é educadora e escritora; ex-reitora da Universidade Federal de Goiás e da Unitins (TO); e ex-presidente da Academia Goiana de Letras e do Conselho Estadual de Educação
Gostei muito do artigo publicado em um conceituado jornal de Goiânia, no último dia 12 de outubro, assinado pela jornalista Waldinea Ladislau, sob o título acima, que peço vênia para repetir.
O trabalho, muito embora não podendo substituir a escola formal, que institui e transmite conhecimentos, é o melhor instrumento de formação para a vida. Eu mesma trabalhei – ministrei aulas – aos 17 anos, por honrosa nomeação oficial do então secretário de Estado da Educação de Goiás, Cônego José Trindade da Fonseca e Silva, nos idos de 1951. Mas meu irmão Deny começou a trabalhar muito antes. Engraxava sapatos, vendia guloseimas nas portas dos circos lá pelos anos 40, em Goiandira, e em Goiânia, vendia balinhas na porta do Cine Teatro Goiânia por volta dos anos 45/50, além de ser entregador de roupas em lavanderias, até que arranjou um emprego formal na Cerg (Comissão de Estradas de Rodagem de Goiás, mais tarde Dergo), quando tinha 17 anos de idade. Tinha carteira de menor assinada (de capa vermelha) e contribuía para o Iapi.
O trabalho, nessa faixa etária da formação da personalidade e da estruturação do caráter da pessoa, é um instrumento que não tem substituto. Nada lhe é igual. Não se trata, o trabalho, de um castigo divino dado ao homem em expiação a um pecado cometido, mas um meio destinado à redenção, justamente desse pecado. Foi por meio do trabalho que o homem, no paraíso, se reconciliou com Deus. O trabalho é, pois, uma espécie de 8º sacramento.
Trabalhar na fase etária do crescimento mental, intelectual, físico, social e moral do indivíduo é uma bênção. O que não pode ser tolerado, e, sim, deve ser combatido de todas as formas, é o trabalho escravizante, que impede o jovenzinho de freqüentar a escola ou o que o leva a missões que oferecem perigo, como trabalhar em carvoarias, em canaviais ou no manejo de máquinas perigosas, e outras atividades do mesmo gênero e grau.
O trabalho dignifica a pessoa e leva os mais jovens a aprendizados que a escola formal não oferece. Eu diria que o trabalho complementa a escola.
Proibir, simplesmente, os mais jovens de trabalhar, é um equívoco, em matéria de educação integral. O trabalho é uma escola.
Se existem tipos de trabalhos condenáveis aos mais jovens – e eles existem –, não é proibindo indistintamente o trabalho a menores de qualquer idade que se fará a justiça. Em muitos casos – se não for na maioria deles – esses pequenos jovens jogados na ociosidade se tornam menores marginais, meninos de rua, instrumentos fáceis nas mãos de traficantes de drogas e de outros tipos de bandidagem, nas grandes cidades. Em geral, eles descuidam da escola, tornam-se rebeldes na família e se perdem para a vida, causando enormes males à sociedade e a si mesmos. A ociosidade, também, é uma escola – a pior delas.
Segundo me consta – não sou especialista no assunto – tanto a Lei nº 5.859/72 como a Constituição Federal, no § 1º do art. 7º, são omissas quanto à idade para empregos domésticos. Veio, agora, esse decreto presidencial, preenchendo essa lacuna, proibindo esses empregos para menores, com 16 e 17 anos.
Vejamos o que pode acontecer com uma moça de 17 anos, empregada doméstica em uma casa de família, onde ganha o seu salário conforme a lei e onde recebe comida, bebida, em muitos casos lugar para dormir, e onde é tratada com dignidade. Em virtude do Decreto 6.481/2008, vê-se impossibilitada de continuar trabalhando e ganhando seu dinheirinho que, regra geral, vai quase todo para o sustento da mãe pobre com filhos menores, às vezes com um marido doente ou desempregado. Imaginemos três hipóteses: 1ª) a patroa faz vista grossa ao decreto e continua mantendo a empregada e, embora cumprindo todos os requisitos da lei do trabalho, corre o risco de sofrer punição legal; 2ª) a patroa dá baixa na carteira de trabalho e mantém a jovem como empregada informal até que complete 18 anos de idade, correndo também o risco de, ante uma fiscalização maior, sofrer punição legal; 3ª) dá baixa na carteira de trabalho, dispensa a empregada, comprometendo a sustentabilidade financeira dela e de sua família a que ajudava e que agora vai passar por necessidades de toda ordem. Ociosa, essa moça pode, até, entregar-se à prostituição para ganhar um dinheirinho.
Caro leitor. Por qual dessas três alternativas você opta? Ou será que você tem uma outra opção?
Maria do Rosário Cassimiro é educadora e escritora, ex-reitora da Universidade Federal de Goiás e da Unitins (TO) e ex-presidente da Academia Goiana de Letras e do Conselho Estadual de Educação