Um grama de infelicidade
Um grama de infelicidade (Diário da Manhã, 19/11/2008)
Welliton Carlos
Da Editoria de Cidades
A.A.L., 32, é viciado em cocaína. Em alguns dias da semana, não sai para trabalhar. Noutros, não conversa com a esposa nem brinca com a filha. Tem dia que ele nem chega em casa. Jovem da classe média-alta, A.A.L. teve origem numa família bem situada de Aparecida de Goiânia – com vários imóveis e empreendimentos na Capital. O pai é famoso na cidade e já cansou de pedir a internação do rapaz. Psiquiatra, psicólogo e toda a família tentam ajudá-lo. Mas ele não quer auxílio – pelo menos na hora em que está sob o efeito da droga. A história de A.A.L. não saiu na capa da Veja desta semana, como o drama do ator Fábio Assunção ou a eterna luta do comentarista esportivo Casagrande. Nem por isso sua vida é menos melancólica.
A cocaína é um entorpecente que pode ser encontrado em qualquer lugar, disse recentemente Mohammed D’Ali ao Diário da Manhã. A Polícia Civil efetua apreensões e comprova a afirmação ao DM. Mohammed é acusado de esquartejar a inglesa Cara Burker. A cocaína teria sido agente potencial para sua monstruosidade.
Esta espécie de droga tem poder de raptar o livre-arbítrio e dominar comportamentos. A.A.L. era estudante de Direito. Trancou a matrícula. Tentou voltar três vezes, mas a vontade altruísta perdeu para a biologia alterada de seu corpo. “Certo dia, ele chegou a ir para a terapia. No meio do caminho, desviou o carro para comprar cocaína”, diz M.M.L, esposa de A.A.L.
Em um determinado momento, a cocaína passa a prejudicar a saúde. No caso de A.A.L., ela ainda parece normal, diz um parente. Mas é fato: a pessoa pode ter surtos e até mesmo morrer. A droga produz uma montanha-russa dentro da cabeça.
Os cientistas se mostram incapazes de descobrir como exatamente a substância age e qual terapia seria mais eficaz para impedir que o viciado se autodestrua. A cocaína, para a maioria dos viciados, permanece uma viagem sem volta. A pessoa pode gastar 10 dias para se viciar e 30 anos para diminuir o uso.
O cérebro de A.A.L. tem sido danificado aos poucos. Ele prefere falar que está bem. A cocaína produz sensações e seu uso prolongado leva à dependência das emoções produzidas, explica Jamil Issy, um dos autores do livro Drogas: causas, efeitos e prevenção (Editora Talento).
Poucos dias para viciar
Jamil Issy, ex-professor de Toxicologia da Universidade Federal de Goiás (UFG), informa que a cocaína não tem o poder de viciar imediatamente. “Mas poucos dias são suficientes para que o organismo da pessoa se acostume aos efeitos e se torne dependente. Felizmente, existem tratamento e cura”, explica.
Issy diz que a cocaína é o mais poderoso excitante do sistema nervoso central. Por isso o efeito é agressivo. “Ela causa dependência martirizante.” O especialista explica que o uso da droga só faz o usuário pensar no próximo grama. É, portanto, um exemplo de círculo vicioso. “A partir da síndrome de abstinência e do estado de necessidade, o indivíduo é capaz de realizar qualquer ato ou delito. Até matar. Basta ver os casos de filhos que matam os pais por conta da necessidade de uso da droga.”
Alberto Alves de Oliveira, advogado criminalista e um dos multiplicadores do Programa de Prevenção Contra as Drogas da Maçonaria Grande Oriente, entende que a prevenção é o melhor instrumento para impedir que a cocaína se alastre pela sociedade. “É preciso mostrar para as pessoas que a prevenção é nossa única arma. O ser humano tem o livre-arbítrio: a cocaína é um malefício para a saúde, que destrói a família e financia a violência. Ele tem certeza que deseja isso?”, questiona.
O psiquiatra e psicanalista Sérgio de Paula Ramos, da Unidade de Dependência Química do Hospital Mãe de Deus, de Porto Alegre, diz que o tratamento deve obedecer a uma série de critérios. “Conhecer o paciente, sua história e de sua família é o ponto de partida necessário para a ulterior proposta terapêutica”, afirma em estudo sobre gerenciamento de casos. Uma das indicações do psiquiatra é a terapia familiar. Ele conta que não tem sorte em encontrar famílias funcionais em casos de dependentes de cocaína. Isso significa que falta cooperação em muitos lares.
Mudança no mercado
A cocaína é hoje distribuída com facilidade. Ocorre um fato característico da lei de mercado. No sistema capitalista, o risco da produção eleva a expectativa do lucro. Pela Lei 11.343, o traficante pode pegar 15 anos de prisão – fora seqüestro, homicídio e latrocínio, é uma das penas mais severas da legislação nacional. Por isso o traficante prefere hoje arriscar o tráfico de produtos mais caros – o grama da cocaína chega a custar R$ 40, enquanto a maconha não chega nem a 10% deste preço. “Por isso ela é hoje mais facilmente encontrada. Na verdade, é mais fácil achar cocaína do que pão francês”, ironiza Izaias de Araújo Pinheiro, titular da Delegacia Estadual de Repressão a Narcóticos (Denarc), comprovando o que disse o usuário Mohammed. “A vítima não deixa de ser um distribuidor”, fala a autoridade policial, explicando o motivo da proliferação. “Hoje, temos a familiocracia: a mãe vende, o pai, o filho, o neto, toda a família. Veja a ‘Velha Coca’”, diz, citando uma ex-traficante idosa do Jardim Novo Mundo.
A realidade traçada por Izaias pode também ser atestada pelos números de apreensões. A amostragem da Denarc indica maior apreensão de cocaína que maconha – encontrada em maior quantidade, mas em abordagens menores se comparada às apreensões de coca.
No ano passado, a Denarc apreendeu 1,2 tonelada de maconha, 57 kg de cocaína, 27 kg de crack e 8 mil latas de merla. Até setembro deste ano, a Polícia Civil realizou apreensões de 1 tonelada de maconha, 130 kg de cocaína, 77 kg de crack e 8.300 latas de merla. Tanto o crack quanto a merla têm origem na pasta de coca e integram a contabilidade do apetitoso mercado.
Conforme os números, a apreensão por tráfico de cocaína duplicou em 2008 e o ano nem terminou. A prisão de envolvidos também avançou de 2007 para 2008. A Polícia Civil prendeu 59 mulheres e 162 homens suspeitos por tráfico no ano passado. Este ano, até setembro, 43 mulheres e 192 homens já foram detidos.