Obama inaugura era do pós-racismo

Obama inaugura era do pós-racismo (Diário da Manhã, 20/11/2008)

Welliton Carlos
Da Editoria de Cidades


Goiás tem poucos negros nos cargos de comando. Basta correr os olhos e procurar. A barreira da cor dificulta o acesso. O apartheid histórico caiu na África do Sul, mas o imaginário ainda persiste nos guetos do poder. E Goiás não é diferente do Brasil, que não é diferente do mundo.

No Dia da Consciência Negra, data em que Zumbi tombou frente aos poderosos da época, uma pequena mudança: os negros querem mais do que direitos iguais. Querem mostrar competência e a possibilidade de marcar a cultura como raça criativa, inteligente, capaz e que não merece tamanha crueldade enfrentada ao longo da história.

A vitória de Barack Obama entre os americanos reforçou o sentimento latente de que é preciso mudar a realidade.

Marcelo Paixão, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), afirma que a inserção da mulher negra no mercado de trabalho, por exemplo, é ainda uma batalha étnica no País. Ele divulga o Relatório Anual de Desigualdades Raciais. Na pesquisa, dados para reflexão: apenas um terço (32,9%) das ações anti-racismo são julgadas procedentes (índice menor do que em casos similares de brancos). O estudo apresenta dados positivos: pequena queda na taxa de assassinatos de jovens negros. Mas o professor quer mais: “As taxas de homicídios para esse grupo são iraquianas.”

Este paradigma de mudança urgente foi reforçado após a vitória do líder americano. Além de toda igualdade proposta por Paixão, os negros querem mostrar que não existem limites ou genética determinante da capacidade. A vitória de Obama é inspiradora para este novo patamar de questionamentos.

“Apenas a experiência da presença física da vitória de Obama já será dignificante para as novas e futuras gerações”, acredita Uene José Gomes, coordenador do Centro de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Católica de Goiás (UCG).

Barreira
A realidade goiana, ainda sem a presença de lideranças nas esferas de poder, é a demonstração de que a barreira persiste. Uene afirma que Goiás já teve políticos negros, mas que se originaram de discursos indiferentes à herança étnica. O melhor exemplo é o ex-deputado federal constituinte Antônio de Jesus, que se legitimou mais pelo discurso evangélico do que pela cor.

Hoje, porém, a sociedade apresenta uma condição ideal para a mudança, acredita. Ele rebate, por exemplo, concepções etnocêntricas de que o negro não é capaz de comandar. “Se um jardineiro apresentasse a você uma orquídea maltratada e, em vez de cuidar, a deixasse de lado, com certeza ela morreria; afinal, não teve condições de vitalidade. Mas se você pegar esta orquídea e der a ela as condições ideais, o que você terá?”, questiona. A metáfora faz sentido quando se compara a condição dada aos negros de classe média. Eles quase sempre se destacam.


Momento
para mudar

Alex Ratts, professor da Universidade Federal de Goiás (UFG) e doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP), afirma que a falta de acesso do negro aos núcleos de poder não é um problema de Goiás, mas do Brasil. “O racismo brasileiro impede o negro a ter direito ao espaço público.”

Ele afirma que é preciso discutir de que “lideranças” nos referimos quando se fala de negros. “Temos tradição de congadas, da presenças de poetas e artistas afrodescendentes na cultura local. Talvez eles não sejam reconhecidos, mas existem”, explica o pesquisador, que enxerga com bons olhos a vitória de Obama nos EUA.

Cantora e psicóloga, Cláudia Vieira afirma que a ascensão do novo presidente é exemplo de “vitória da competência”. A artista informa que sua geração encara as recentes transformações como momento especial que deverá motivar mudanças sociais.

O promotor criminal João Teles catalisa esta realidade citada pela psicóloga com orgulho, mas ressalta que os negros já desenvolvem pequenas revoluções. Ele mesmo é fruto de uma geração vitoriosa. O promotor público é, antes de tudo, sinônimo de competência. Ele só chega no cargo após “provar” ser melhor do que outros concorrentes.

Teles apresenta visão mais ampla, e não só de raça. Acredita, por exemplo, que as cotas para negros devem ser destinadas aos grupos sociais marginalizados. Outro fator é a própria condição humana. Se Teles já sentiu o racismo na pele, soube tirar de letra a tentativa de ferir sua dignidade. O pejorativo ou amigável “negão” não faz diferença para ele. A identidade da raça é mais forte. “Só fico revoltado se me chamarem de galego, de branquinho.”

“Era absurdo sermos constituintes”

O educador Manoel Bueno Brito, 67, conhecido como Nequito, ex-professor da Universidade Católica de Goiás (UCG) e Federal de Goiás (UFG), além de poeta e autor de livros didáticos, é um dos intelectuais negros que melhor interpretam o tempo de mudança. Ele enfrentou “cala a boca, negão” várias vezes, inclusive quando subiu no palanque para pedir votos. “Era absurdo um negro querer ser constituinte na década de 1980.”

Insistiu e se transformou em intelectual de primeira grandeza. Professor de Português e Francês, se aventurou em mestrado na área de Filosofia.

Estudou Thomas Hobbes depois dos 60 anos. É de um tempo em que negro não liderava nada. Por isso foi obstinado na formação de novos cidadãos. Os alunos não esquecem a presença de Nequito: “Ele chegou no primeiro dia de aula e colocou Aleluia, de Haendel. Depois, pediu para que cada aluno escrevesse o que sentiu ao ouvir a música. Era uma aula fantástica, humana, ética”, recorda a ex-aluna Eliane Borges.

Por depoimentos como este, Nequito se transformou em líder nato. Hoje, ele festeja a vitória dos negros. “Obama é um salto da civilização. Será uma espécie de susto válido, algo que vai perturbar e alterar a rotina civilizatória, que significou sempre a permanência dos mesmos.”

Nequito acredita que é preciso aplicar por aqui os mesmos princípios que elegeram Obama. O escritor defende maior inserção do negro na política e na educação e para isso defende as cotas. “Quando se critica o sistema de cotas, faço a seguinte pergunta: ‘que critérios teve o escravagismo?

Este sistema perguntou se algum negro deveria ou não se submeter ao poder branco? Esse sistema foi, por acaso, ético?’”.

Nequito acredita que a atuação política do negro pode trazer dignidade ao sistema democrático. Para isso, ele cita a eleição do gari Negro Jobs nas eleições municipais de Goiânia. Nequito diz que não votou no vereador, pois não o conhecia. “Mas hoje, com certeza, votaria nele, pois tenho visto alguém que sabe o que fala. Engana-se quem pensa nele como alguém folclórico. Ele tem um discurso forte.”

Uene Gomes interpreta de forma semelhante a eleição do gari goianiense. Para o professor da UCG, o primeiro “nome” de Jobs significa a condição profissional. O segundo, explica, é uma forma de assumir a condição étnica. “Está em seu nome o termo ‘negro’. Ele comunica isso.

E ele próprio vem tornando pública essa aproximação, dizendo que pretende se qualificar para o mandato”, analisa o professor.

Goiano recebeu e-mail da equipe do presidente

Negro Jobs, consciente das mudanças que ocorreram nos Estados Unidos, deseja ver a política como espaço de transformação social e cultural. Daí o orgulho de acompanhar a vitória de Barack Obama pela imprensa. Empolgado, ele manteve contato com a equipe do presidente eleito ainda no começo da campanha. Hoje mostra e-mail enviado para equipe de Obama antes da eleição confirmar a vitória do candidato negro.

Para sua surpresa, ele recebeu retorno de David Plouffe, um dos homens do futuro presidente. Em inglês, a resposta agradece o seu apoio e anuncia mudanças que chegarão em todos lugares – inclusive no Brasil.

Uma mudança que afetará, com certeza, gerações como a do músico Heráclito Aquino, integrante de um grupo negro do Jardim Primavera: “Antes, até pouco tempo, não se imaginava o negro governador o negro presidente. Isso para mim é realidade.”

Nequito, porém, observa que é preciso acompanhar a gestão de Obama com um olho e com outro observar as críticas. “Algumas pessoas torcem pelo fracasso. Gostam de dizer: ‘Não falei?’ Optam por usar expressões depreciativas e cobram das outras pessoas o que não deram. Espero que não façam isso com o Obama”, fala.