Tensão no enterro de Joaquim

Tensão no enterro de Joaquim (Diário da Manhã, 10/12/2008)

Matheus Álvares Ribeiro
Da Editoria de Cidades
Márcia Fabiana
DA EDITORIA DO DMREVISTA

Foi sepultado na manhã de ontem, no Cemitério São Pedro, em Catalão (a 255km de Goiânia), o corpo do metalúrgico Joaquim Raimundo Neto, 23. O rapaz faleceu na manhã da segunda-feira, 8, em Guarulhos (SP), em decorrência de uma insuficiência respiratória agravada pela leucemia mielóide aguda, descoberta em novembro. Testemunha de Jeová, o jovem se recusou a receber tratamento, alegando motivos religiosos. No dia 28 de novembro, ele viajou à cidade paulista em busca de tratamento alternativo.

Apesar da dor em comum pela perda, o motivo que reuniu a família e amigos do rapaz era distinto. De um lado, parte dos familiares, residentes em Catalão e também testemunhas de Jeová, alegavam que a morte de metalúrgico foi vontade divina. Do outro, os irmãos, Marco Aurélio e Fernando, e outros parentes choravam a morte precoce do metalúrgico e a escolha “errada” do tratamento.

Indignado com a morte do irmão, Marco Aurélio do Couto, 34, lamenta a escolha da terapia alternativa em vez da transfusão de sangue. “Ouvi do médico em Goiânia que se meu irmão aceitasse a transfusão de sangue ele teria 80% de chance de se curar. Mas não quiseram fazer a transfusão”, chora. Marco Aurélio não tem dúvida de que o irmão Joaquim faleceu por não receber cuidados adequados. Ele questiona o tratamento oferecido em Guarulhos. “Como posso confiar em um tratamento de um hospital, cujo nome sequer é revelado. Por que não dizem o nome da instituição?”, indaga.

Dois membros da Comissão de Ligação com Hospitais (Colih), das Testemunhas de Jeová, Éber da Conceição Barbosa, 36, e Tarcísio Oliveira Rios, 30, estiveram presentes em Catalão. Os dois vieram de Guarulhos para representar o hospital e prestar homenagens à família.

Éber e Tarcísio explicam que a função da Colih é garantir às testemunhas de Jeová o direito de receber o tratamento mais adequado à fé professada. Eles auxiliam na escolha do hospital, dão suporte emocional e espiritual, transporte e hospedagem para os membros da igreja. Em caso de óbito, cabe a eles assessorar a família no velório e sepultamento. “O objetivo é que a pessoa seja cuidada por inteiro e não pela metade, como foi em Goiânia”, ressalta Éber.


“Sangue não salva vida”


Assim que chegou a Guarulhos, o metalúrgico foi submetido a tratamento denominado “alternativo”, que não utiliza transfusão de sangue. Joaquim teria recebido doses de eritropoetina e hemax, medicamentos que aumentam a produção de glóbulos vermelhos. Também foram administradas doses de sulfato ferroso, que auxilia no tratamento da deficiência em ferro, vitaminas B6 e B12 e ácido fólico. Além disso, por onze dias , Joaquim fez cinco sessões de quimioterapia. “Foi uma fatalidade, pois tudo o que se podia fazer por ele foi feito”, afirmou Éber da Conceição Barbosa, membro da Comissão da Ligação com Hospitais, das Testemunhas de Jeová. Para Tarcísio Oliveira Rios, outro membro, o tratamento é mais que adequado e que transfusão não é a única solução para quem tem leucemia. “Sangue não salva vida”, destaca.

“Joaquim faleceu porque estava muito doente. O tratamento oferecido em Goiânia agravou o estado de saúde dele”, diz Tarcísio. O hematologista Yuri Vasconcelos, responsável pelo tratamento de Joaquim no período em que ele esteve em Goiânia, não foi encontrado para comentar as afirmações. Em defesa dele, no entanto, o também hematologista e professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás (UFG) Celso da Cunha Bastos afirmou que o tratamento feito em São Paulo é ineficaz e poderia agravar o estado de saúde do rapaz.

Celso explica que a leucemia é causada na medula óssea, responsável pela produção de células sangüíneas. O doente produz apenas células defeituosas, que não cumprem com as funções no organismo. Assim, qualquer medicamento que estimule a produção celular não resolverá o problema, mas encherá o corpo do paciente com mais células anormais.

O único tratamento considerado eficaz pelos médicos é a quimioterapia e posterior transplante de medula óssea. Paralelamente, como era o caso de Joaquim, o médico pode pedir transfusão de sangue para garantir que ele sobreviva até a cura. Não há meios alternativos para fortalecer o paciente.



Opiniões diversas

Amigos de Joaquim têm opiniões diversas a respeito da posição do rapaz. O colega de trabalho Bruno Henrique Rosa, 21, afirmou estar surpreso com as notícias e que o amigo nunca comentou que era testemunha de Jeová. “O assunto é muito delicado. Acho que só na hora do aperto é que poderia escolher o melhor para mim. Espero que ele tenha feito o certo.”
A enfermeira Izabel Georgina Brilhante, 36, aprova a escolha do amigo. “Quisera eu ter a fé de Joaquim. Ele foi fiel aos ensinamentos religiosos que recebeu.” Mesmo sendo uma profissional de Saúde, ela não titubeia em responder que a transfusão de sangue, talvez, não fosse favorável ao rapaz. “Quantos recebem transfusão e de nada adianta? Ele morreu porque não teve tempo de encontrar um doador de medula e não porque não fez a transfusão”, argumenta.

Religiosos
Fora as Testemunhas de Jeová, nenhuma outra religião se opõe à transfusão de sangue. O padre José Francisco Fernandez explica que a posição das Testemunhas se deve a interpretações literais da Bíblia. Outras religiões, no entanto, avaliam o contexto histórico em que os textos foram escritos e os adéquam ao contexto atual. Ele lembra que a posição da Igreja Católica moderna é preservar a vida: “A vida vem em primeiro lugar.”

O espírita Sílvio Carvalho Neto ressalta que a transfusão de sangue é um avanço da ciência e, portanto, benefício para a humanidade. Para ele, não há qualquer restrição ao tratamento previsto na doutrina espírita. “O médico também é um enviado de Deus”, avalia.

O pastor Joer Correia, por sua vez, lembra que, apesar dos segmentos pentecostais e neopentecostais acreditarem na cura direta pelas mãos divinas, a transfusão de sangue não é rejeitada por nenhuma igreja evangélica. Ele explica que curas diretas são resultados imediatos, milagrosos, que, supostamente, dispensariam tratamentos médicos. A posição não é totalmente partilhada pelos protestantes históricos, segmento do qual Correia faz parte. “Acreditamos na cura divina, mas ela pode acontecer por diversos meios, inclusive médicos.”



“Foi um suicídio planejado”


Inconformado, Marco Aurélio do Couto afirma que o irmão assinou, em Goiânia, termo onde proibia doação de órgãos e transfusão de sangue. Ele questiona, no entanto, os meios pelos quais ele desautorizou o tratamento. “Meu irmão queria viver. Ele estava sob muita pressão”, afirma.
“Aquilo foi um suicídio planejado por eles”, acusa. O irmão seria pessoa alegre e que, em outras circunstâncias, lutaria pela vida com as melhores armas disponíveis. Ele lamenta ter sido proibido pela mãe e tios de ver Joaquim ainda com vida. “Só vi meu irmão no caixão”, conta.
Embora não dê detalhes, Marco Aurélio adianta que pretende entrar com ação contra a igreja, de modo a conseguir punição: “Quero justiça.” Ele também manifesta o desejo de processar a mãe e os tios de Joaquim (os dois são irmãos apenas por parte de pai), que teriam influenciado o rapaz a rejeitar o tratamento. “Nossa indignação não será enterrada com Joaquim.”

MP

O promotor Isaac Benchimol afirmou ontem que convocará a família de Joaquim e a igreja da qual ele participava para esclarecer as circunstâncias da morte do rapaz. Ele deseja saber se houve negligência no tratamento do metalúrgico durante o período em que ele esteve em São Paulo: “Mandarei investigar em que circunstâncias ele morreu.”

Benchimol descarta a possibilidade de a família ser processada, já que Joaquim era maior de idade, estava lúcido e não possuía deficiência que o tornasse incapaz de tomar decisões. Já a igreja pode ser punida, desde que se comprove responsabilidade dela na morte do membro.