Cancioneiro popular

 Cancioneiro popular (Diário da Manhã, 12/12/2008)

Em períodos de crise econômica, cada um tenta salvar aquilo que é de seu agrado. Eu particularmente me preocupo com a possibilidade de redução nos recursos destinados à pesquisa empírica sobre a musicalidade tradicional do sertão brasileiro. O cancioneiro popular do Centro-Oeste é de uma sutileza de rara beleza, rico em estilos como o cururu, o lundu, o desafio, as seguidilhas e as ladainhas. Ocorre que, por falta de aporte financeiro, há riscos de que muitas preciosidades sejam perdidas. A maioria dos repositários dessas canções é formada por pessoas em idade adiantada e que nem sempre conseguem transmitir o legado para as novas gerações.

A pesquisa neste campo das expressões culturais não é fácil. O cancioneiro popular é preservado por meio da tradição oral. O registro das modinhas exige um bom aparato em equipamento de gravação e som – praticamente um estúdio portátil. Também não é tão simples localizar quem conhece modinhas arcaicas. Por vezes, é preciso deslocar centenas de quilômetros para uma pequena corrutela, no sertão brabo, e descobrir que o ancião que conhecia as músicas já é falecido. É trabalho cansativo, feito mais por amor do que por retorno financeiro.

A preocupação em manter o cancioneiro popular não data de agora; Basileu Toledo França havia reunido esparsos de Americano do Brasil na obra Romanceiro e Trovas Populares, publicada pela Editora UFG em 1979 e que já passou da hora de uma reedição ampliada. Americano do Brasil, talvez o maior folclorista goiano, pesquisou extensamente registros orais das canções tradicionais. Infelizmente, a estrutura melódica e harmônica do material recolhido pelo pesquisador na década de 1920 se perdeu pela falta de registros sonoros.

Em Goiás, há atualmente duas importantes frentes de pesquisa, com resultados excelentes. A primeira é abrigada pelo Instituto do Trópico Subúmido da Universidade Católica de Goiás. A extensa pesquisa realizada na região de Correntina – município localizado próximo à divisa entre Goiás e Bahia – rendeu pouco mais de uma dezena de discos sobre cânticos imemoriais, a maioria marcada pela religiosidade. Os trabalhos foram lançados sob o nome Sons do Cerrado e, infelizmente, há muito não se fala sobre o estudo nos jornais.

A outra frente é encabeçada pelo Clube do Violeiro Caipira de Brasília. Um dos membros do grupo de pesquisa é o sociólogo Sebastião Rios, que leciona na Universidade Federal de Goiás. Recentemente, lançaram um CD e um DVD com o moçambique do Capitão Julinho e o Congado de Fagundes, de Minas Gerais. O evento foi realizado em Goiânia, ao longo de dois dias, e aberto ao público.

O resultado do estudo é de rara beleza. A religiosidade expressa nas letras e na estrutura musical remete a séculos de apuramento, preservado oralmente em pequenas comunidades do interior brasileiro. O valor cultural da pesquisa é inestimável. Não somente pela possibilidade de identificar e categorizar identidades tradicionais; o que se preza também é – conforme constatado pelo sociólogo português Boaventura Souza Santos – a tentativa de preservar a experiência folclórica, cuja ancestralidade se perde em meio ao imenso volume de informações disponíveis.

Não se discute aqui somente a musicalidade como expressão autêntica de cultura; o que se coloca em jogo é o risco do desaparecimento, sem registro algum, de uma importantíssima faceta da construção do espírito – aqui compreendido em sua acepção alemã clássica – daquilo que convencionou-se chamar de cultura caipira.

Não se trata somente de responsabilidade privativa do poder público. A iniciativa privada poderia assumir para si, por meio das leis de incentivo à cultura, o amparo para a realização de pesquisas dessa natureza. O cancioneiro tradicional não precisa ser menosprezado em dias de crise. Valorizar o que somos permite que a goianidade seja reforçada enquanto marca. Basta enxergar aqui uma oportunidade econômica, que também pode permitir a descoberta sobre o que é ser caipira numa época em que a identidade se torna cada vez mais fluída e fugaz.

Victor Hugo Lopes
é jornalista e professor da Universidade Católica de Goiás