Soluções da Alma
Soluções da Alma (Diário da Manhã, 26/01/09)
Soares, juiz de Direito aposentado, mora no primeiro andar de um hotel de luxo, no Setor Oeste, em Goiânia. Do alto do prédio, ele vê o que se passa embaixo, na calçada e na rua. Era como se estivesse no camarote do Teatro Amazonas de onde já assistiu a uma peça de teatro. Aparentemente, ele vive bem: sua condição financeira lhe permite até algumas regalias; intelectualmente bem formado, lê muito e adora teatro; Também vai sempre ao cinema.
Isaura, sua mulher, morreu há cinco anos num acidente de carro. Como tinha de fazer o inventário, aproveitou e dividiu os bens do casal entre os dois únicos filhos, inclusive a casa onde moravam. Ficou apenas com o salário da sua aposentadoria e o carro, que troca todo ano. Quis viver só, para não incomodar a sua família. Por isso a opção pelo hotel, onde tudo é organizado e funcional. Seria uma vida feliz, considerando que não passa por dificuldades financeiras. Mas ele sofre muito com a solidão do lugar onde mora!
Quase não recebe visitas. Seu celular raramente toca. E quando toca é para lhe pedir alguma coisa. Ou é dinheiro emprestado ou ajuda para um amigo com pendência na Justiça. Assim, sua vida vai passando sem muita novidade. A não ser os comentários diários com os outros hóspedes sobre futebol e política. Sua saúde, então, está cada dia pior. Antes, pelo menos, ele juntava uns três amigos e iam pescar no Rio Araguaia. Hoje, nem isso ele faz, seus amigos sumiram, estão cuidando das suas vidas. E, para tristeza do Soares, seu diabetes o proíbe até de beber uma cerveja, como gostava de fazer no fim de tarde.
Ele se levanta, diariamente, muito cedo. Hábito antigo da fazenda dos seus pais, em Bela Vista, onde morou na infância. Ele ainda era menino quando seu pai foi assassinado por um peão da fazenda e sua mãe, pelo que lhe disseram os parentes, morreu de desgosto, alguns anos depois. Lutou para estudar e se formar em Direito, na Universidade Federal de Goiás. Trabalhou duro para criar seus filhos e, depois de completar o tempo de serviço, foi aposentado. Seu modo de vida é o da roça. Hoje ele já está de pé desde as cinco horas da manhã. Sua rotina diária é assim: acorda, levanta e vai pra sacada do prédio.
Hoje faz mais um aniversário da morte da sua querida Isaura. Por essa causa está mais triste. Seu olhar procura alguma novidade no vai-e-vem das pessoas. Seus olhos, qual binóculos, percorrem o local, parando num ponto do outro lado da rua. Um homem de meia-idade passa, a pé, com um menino de uns seis anos de idade. Eles brincam e riem muito; não dá pra ouvir o que dizem. Porém, se encanta com a alegria dos dois.
Aquela imagem lembra muito os seus filhos e os seus netos; estes, hoje adolescentes. Todos são muito ocupados com o trabalho, os estudos, os cursos; essas coisas que tiram o tempo das pessoas. De vez em quando eles ligam pra saber sobre sua saúde. Pra não incomodá-los Soares responde que está tudo bem e que não precisam se preocupar com ele.
Ao ouvir essa resposta, o interlocutor encerra logo o assunto:
- “Então, está bom. Um beijo.”
- “Fica com Deus.”
Fica com Deus e com os seus pensamentos. No dia do seu aniversário, em outubro, ele convidou toda a família para um almoço no restaurante do hotel. Lá estavam os seus dois filhos, a nora, o genro e os seis netos. Sua neta Natália, filha da Elenice chegou com sua cachorrinha Fofa nos braços. Fofa latiu o tempo todo, implicada com o jeito esquisito do Soares.
Mal terminaram o almoço e, todos, rapidamente correram para outros compromissos. Quando iam longe foi que o Soares se lembrou de que não cantaram “Parabéns pra você!”. Desculpou-os porque talvez eles estivessem preparando uma surpresa para comemorar o seu aniversário na casa de um dos filhos, à noite. Mas nada disso aconteceu. Passaram mais de dois meses do aniversário e nenhuma visita dos seus filhos ou netos. Mas “hoje eles vêm”, raciocinou Soares. “Se não for por mim, será pela Isaura.”
Neste dia, como nos anos anteriores, seu filho Osvaldo deve visitá-lo. Será uma boa ocasião para conversarem. Soares se lembra das estripulias do filho Osvaldo, quando era menino e do assanhamento da Elenice, que se dizia namorada do Elvis Presley, o rei do rock. Ela, quando garota, sonhava que o bonitão de Hollywood vinha em seu cavalo branco e a levaria para os Estados Unidos. Recorda, com saudades, da infância dos filhos e também dos netos: as férias nas praias de Maceió; as temporadas no Rio Araguaia; as festas dos aniversários de cada um da família e os passeios de domingo no Clube Jaó.
Seu olhar se perde naquele espaço espremido pelos prédios vizinhos. Estava ansioso pela espera. Inclusive, já tinha avisado ao pessoal do hotel, com certo orgulho, que hoje ele não ficaria pro almoço, pois ia sair com seus filhos e netos. Enquanto pensava nisso, Soares consultou o seu relógio.
– “Pois é, mas eles estão demorando. Onde será que estão?”
– “Por que não chegam logo?”
– “Vou ver se eles ligaram, afinal, a campainha do meu celular às vezes não toca”.
Consultou seu celular. Não havia registro de nenhuma ligação. Liga para seu filho, Osvaldo: uma voz metálica responde: “Deixe seu recado na caixa de mensagem.” Desliga o celular decepcionado. Resolve falar com sua filha Elenice: depois de chamar três vezes, uma voz responde: “Mensagem gratuita.” “Assinante programado para não aceitar esse tipo de chamada.” Desliga novamente, mas seu coração, embora sangrando de dor, tenta justificar a ausência dos seus queridos.
Afinal, pensa Soares: “Eles podem estar muito ocupados hoje.” Aguarda o retorno das ligações. Espera, mas ninguém retorna. Desiste de esperar. Quem sabe mais tarde eles ligam. Os olhos do Soares se enchem de lágrimas e os soluços escapam da sua alma.
Doracino Naves é jornalista, diretor e apresentador do programa Raízes Jornalismo Cultural, na Fonte TV, domingo, 9 horas