Livros

Livros (Diário da Manhã, 06/02/09)

Poucos são os prazeres no mundo que equivalem a fuçar numa estante desconhecida de livros. Pode ser numa biblioteca, em sebos ou mesmo na casa de algum conhecido. Nunca se sabe ao certo quais autores repousam, silenciosos, à espera de uma leitura. Há, ainda, algo fascinante: é possível conhecer um pouco sobre o proprietário daqueles volumes. Ainda que não se possa especular demais sobre a experiência alheia com livros.
Trata-se de foro tão íntimo como escolher a própria mulher ou definir o momento adequado para se constituir família. O rastilho de subjetividade que marca a escolha das leituras de alguém perpassa o campo das sensações e a maneira de se relacionar com o mundo. Posso, portanto, apenas dar ciência à minha maneira pessoal de compreender e saborear as obras escritas. Isso não implica que seja impossível aprender um pouco sobre o outro a partir daquilo que toma por leitura.
Leitores vorazes geralmente compram e preservam centenas ou milhares de livros. Pode-se pensar em toda história sentimental que o prende àqueles volumes. Talvez estejam ali, sem data de compra ou leitura, algumas das primeiras obras que tenha lido na vida. As histórias que, de certa feita, fascinaram-lhe o universo simbólico pessoal e aos poucos passaram a ser incorporadas à personalidade do “ledor”.
As escolhas de autores ou o campo de conhecimento denotam traços do espírito de cada leitor. Tive a oportunidade de conhecer parte significativa da biblioteca doméstica de alguns goianos. Posso destacar duas: a do saudoso médico Eduardo Jacobson, que auxiliou a criar a Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás, e do meu querido avô, Modesto Gomes, que foi um dos fundadores da Faculdade de Comunicação Social da mesma instituição de ensino superior.
Eduardo Jacobson tinha livros em quatro idiomas: francês, alemão, inglês e português. Seu filho, Caio, contou-me que o pai lia com fluência qualquer uma das línguas acima. Havia uma rica coleção de autores clássicos literários e acadêmicos, sob o selo da Enciclopédia Britânica; todos no idioma de Shakespeare. Também havia livros médicos do início do século XX, que provavelmente embalaram os estudos similares de outros grandes nomes, como Pedro Ludovico e Altamiro de Moura Pacheco.
Recordo-me que as obras médicas, em sua maioria, estavam em espanhol. Os compêndios de anatomia humana eram ainda desenhados; fotografias geralmente estavam em trabalhos ligados à cirurgia, ainda que a maior parte dos procedimentos fosse detalhada por meio de diagramas. Tais obras, que foram doadas para a UFG, podem demonstrar aos jovens estudantes de Medicina o processo histórico de evolução das técnicas cirúrgicas e terapêuticas. O conhecimento vivido pelo doutor Jacobson poderia ser, ao menos, compreendido pelas novas gerações que desejem ler alguns desses livros antológicos.
A biblioteca de meu avô Modesto acompanhou-me do nascimento à madureza. Foi peça fundamental para a definição de meus gostos literários e acadêmicos, e a formação de meu caráter. Graças àquela coleção, conheci praticamente todos os autores que me tornaram o caboclo que hoje sou, para o bem ou para o mal. Após deixar-nos numa saudade danada, em lembranças que permanecem vívidas e calorosas, estive algumas outras vezes entre seus livros. Recordo-me de capas de autores goianos, que haviam me sido indicados por vovô; de mestres da literatura clássica, que li ainda menino naqueles mesmos volumes agora empoeirados.
Na edição de ontem, quinta-feira, o DMRevista publicou uma lista de autores goianos, consagrados em provas de vestibular e nas escolas. Algumas dessas obras não constam da biblioteca de meu avô. Provavelmente, por não haver tido tempo para saboreá-las, ávido leitor que era. Minha avó, Ana, decidiu presentear a cultura de Goiás com todo aquele tesouro. Os livros de meu avô serão oferecidos em doação à Academia Goiana de Letras. Isso permitirá o acesso de acadêmicos e da população diante de um rico acervo em obras esgotadas e históricas.
As bibliotecas domésticas têm a magia de formar cidadãos e indivíduos em suas horas solitárias de leitura. O empenho de cada um vai definindo gostos pessoais e acumulando bagagem de conhecimento. Registro cá a imensa honra que tive de ter acesso às coleções de livros de pessoas tão nobres. Espero que a Academia Goiana de Letras aceite este legado de seu ex-presidente e permita às próximas gerações um pouquinho de toda a felicidade que tive nestes meus 28 anos de vida.


Victor Hugo Lopes é jornalista e
professor da Universidade Católica de Goiás